Nada será como dantes

O mundo é cada vez mais igual, com cada qual isolado na sua bolha mas intuindo que, amanhã, nada será como dantes. Tal como Camus antecipava na Peste.

Há duas semanas, reflecti neste espaço sobre “Os vírus e as quarentenas do mundo”, ou seja, como a pandemia entretanto declarada pela Organização Mundial de Saúde e os múltiplos casos de isolamento provocados por ela se tornaram também “uma metáfora do estado do mundo em que vivemos”. Referi, a propósito, as “situações de quarentena não sanitária mas cívica e política, em que os cidadãos perdem o controlo sobre as suas próprias vidas”, favorecendo a “tendência global para a erosão do Estado de direito – pondo a democracia de quarentena – e a progressão do vírus dos governos autoritários”. Ora, como seria previsível, o estado das coisas agravou-se desde então na Europa e no mundo (porventura, com a irónica excepção da China, onde tudo começou), provocando nomeadamente a declaração do estado de alerta em Portugal e do estado de emergência nos Estados Unidos, apesar das anteriores afirmações de Donald Trump, ridicularizando a gravidade do problema.

Um dos maiores paradoxos desta pandemia é que não sendo ela das mais letais, se a compararmos com precedentes próximas, nenhuma atingiu, nem de longe, as proporções de ameaça global da covid-19. Pode até dizer-se que este é o efeito mais intenso e dramático do processo de globalização que marcou o mundo nas últimas décadas e cujas consequências económicas e sociais, senão políticas, pareciam irreversíveis. Agora já nada se sabe.

Outro paradoxo instrutivo: à globalização da ameaça contrapõe-se o reflexo defensivo do fecho de fronteiras, do enclausuramento de países, regiões e indivíduos, para não falar do retorno do instinto nacionalista, mesmo em espaços de vocação cosmopolita. Neste caso, a Europa tornou-se quase uma abstracção, tendo sido reveladora e chocante a falta de solidariedade demonstrada em relação ao país que se transfigurou num autêntico fantasma, a Itália.

A covid-19 absorveu, devorou ou eclipsou todas as outras dimensões da vida contemporânea entre a China e os EUA, convertendo-se no núcleo monotemático de toda a actualidade e arrastando atrás de si a economia, a política, a cultura… É um teste a tudo, à fragilidade de tudo. “Agora estamos todos sob o microscópio – escreve o repórter Dan Zak no The Washington Post. Um vírus invisível vai tornar visíveis as nossas verdadeiras forças e fraquezas. Vai expor as falhas nos nossos sistemas, a sinceridade das nossas relações, as formas como trabalhamos juntos ou não. (…) Quanto mais nos afastarmos dos outros, mais precisaremos deles. A nossa maneira de viver vai ser suspensa, e por quanto tempo?”

O sentimento de um repórter americano não poderia ser mais idêntico ao de um repórter português: estamos todos no mesmo barco, apesar de fechados cada qual na sua concha, de Lisboa a Seattle, Nova Iorque, Madrid, Milão, Pequim. Um dos entrevistados por Zak, Chase Burns, que se isolara em casa, em Seattle, depois de uma crise de febre, interrompeu a quarentena para ir a uma livraria à procura de A Peste, de Albert Camus, o mesmo livro que estou a reler. A coincidência não será talvez surpreendente – até porque nenhum livro é tão profético sobre a situação em que vivemos, apesar de a sua acção se desenrolar, imaginariamente, nos anos 1940 na cidade argelina de Orão – mas não deixa de ser sintomática.

Acometido de uma crise de tosse na livraria, Burns suscitou a agressividade de outros visitantes e recolheu a casa. Mas – nota Zak – não sabe se tem coronavírus porque “como muitos americanos não conseguiu fazer um teste. Cada ataque de tosse ou arrepio poderia ser um sintoma ou uma simulação. Constipação? Gripe vulgar? Alergias? Ou, de facto, coronavírus?”. O repórter constata: “Os hospitais não estão preparados. As escolas não estão preparadas. A economia não está preparada. Pobres e velhos não estão preparados. Pais não estão preparados para os filhos livres da escola e estes não estão preparados para os pais a trabalhar em casa.” O mundo é cada vez mais igual, com cada qual isolado na sua bolha mas intuindo que, amanhã, nada será como dantes. Tal como Camus antecipava na Peste.

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