Os diabretes de Idalécio Metalúrgico aparecem-lhe nos sonhos

Há uma casa na Piedade onde as mesas não são para comer, as cadeiras não servem de assento e ninguém dorme nas camas. Na aldeia em Aveiro, a casa transformada em galeria (quase secreta) não está vazia – antes, alberga muitas centenas de diabos, bestas e outras criaturas surrealistas.

Saíram todos dos sonhos de Idalécio, “metalúrgico sexagenário”, que também lhes dá forma com restos de madeira, um martelo e poucas preocupações com fazer bonito ou feio. “Isso não sei. É louco. Aberrações completas”, diz-nos, muito sério. “Não sou artista, sou metalúrgico. Isto são coisitas que faço nos tempos livres para relaxar da pressão do trabalho. Não é vendável, mas é divertido.” Pousa o machado: “Podia ver futebol, mas não gosto tanto.”

Em agendas de anos passados, desenhou figuras coloridas de bocas largas e olhos atentos, uma por cada página, mas muitas por dia. O bestiário dá origem a criaturas, quadros ou peças de barro que nunca são iguais umas às outras. “E se são é porque algo correu mal”, diz quem as faz quase obsessivamente, enquanto mergulha nas caixas de cartão onde guarda obras que ninguém viu. “Isto não tem fim”, comenta, divertido.

Não tem séries de trabalhos, nem as quer ter, porque, para isso, já chega a fábrica onde passa o dia. Também não faz inventários, nem do que cria nem das peças que compra em feiras de artesanato ou troca com outros artesãos. Gosta de resultados rápidos, de misturar muitas cores nas pinturas e de "ver os objectos não pelo que eles são, mas pelo que poderiam ser".

Na antiga adega da casa do tio, onde cresceu, o metalúrgico montou uma oficina que manteve um segredo bem guardado. Foram precisas semanas e muitas idas à Piedade para Idalécio aceder a mostrar a colecção à Cruzes Canhoto, galeria de arte bruta, primitiva e popular no Porto, desejosa de catalogar o “caos organizado” que a casa fechava. Numa das divisões repousam as obras escolhidas por José Carlos Soares, um dos responsáveis pela galeria, que apesar de várias visitas "ainda não viu metade" da colecção.

“Nessa altura, porém, descobrimos, em simultâneo, o temperamento menos fácil deste homem, que para nossa surpresa foi mostrando resistência a expor as suas peças”, escreve Tiago Coen, um dos fundadores da galeria. Para o convencer, foram precisos cinco meses. Dizem-nos que foi uma outra luta autorizar o P3 a filmá-lo na oficina. Desde essa primeira exposição em 2016, ainda em semi-anonimato, a galeria já vendeu centenas de esculturas e quadros. Até 13 de Março ("e mais uns dias", como é costume da galeria), a exposição Santos, Diabos e Outras Bestas mantém-se no número 452 da Rua Miguel Bombarda. Mas Idalécio Metalúrgico continua a repetir: “Pretensões a ser artista não tenho, nem isso me interessa.”

Antes de desligar as luzes da adega transformada em oficina (e refúgio), cala o rádio que lhe faz companhia, limpa com um pincel os restos da madeira no “cepo das marradas” e o machado, organiza os lápis e as folhas que de um lado apresentam as contas e encomendas de materiais da fábrica, do outro os rabiscos a lápis de carvão. “Isto vale o que vale. Gosta quem gosta.”