Quando um professor morre, uma parte de seus alunos também parte

Professor não devia morrer, devia ser agraciado com a imortalidade como prémio pela escolha, pela profissão.

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Um curso pode ser interrompido. Uma aula pode ser interrompida. Um congresso pode ser interrompido. Um teste pode ser interrompido. Mas e quando a vida, motor por trás de tudo isso, é interrompida?

A “indesejada das gentes”, como chamava à morte Manuel Bandeira, é particularmente indesejada quando se trata de professores. Os alunos, no seu trato diário com os verdadeiros mestres, parecem esquecer que a fragilidade da vida não será minimizada pela estatura e pela quase deificação que o mestre é capaz de imprimir no espaço académico.

Entretanto, diante da morte, professores, por mais profetas que possam ser, lamentavelmente sucumbem. Não deveriam, é verdade, já que assumem tão grandiosamente a tarefa de mostrar os caminhos que não mereciam ter os seus próprios interrompidos. Professor não devia morrer, devia ser agraciado com a imortalidade como prémio pela escolha, pela profissão. E será que, por acaso, eles reivindicam algum prémio? Os verdadeiros não. São abnegados por natureza.

Contentam-se em ver seus alunos alçarem voos mais altos que os seus, nem que para isso tenham de ser a catapulta de tantos sonhos alheios. Professor é bicho besta, fica feliz com o êxito do outro, na verdade, só fica feliz se vê superado o seu próprio êxito. Por isso, é a profissão por excelência dos humildes, mas não - como querem fazer valer alguns governantes - dos humilhados.

E assim vamos assistindo aulas, acompanhando cursos, levando a vida como se a perenidade dos ensinamentos dos mestres fosse suficientemente proporcional à da vida. Somos, então, surpreendidos com um último ensinamento que nos é imposto arbitrariamente: nada supera a efemeridade que o tempo impõe à vida, ainda que essa vida seja a de um professor, a um só tempo divinamente humana e humanamente divina. O ensinamento derradeiro, talvez encomendado pelo próprio mestre, é que não há páreo para finitude dos seres que vivem sobre a face da Terra.

Eternizam-se não por ficarem, mas por justamente irem, por partirem com a indubitável certeza de terem ficado nas memórias de seus discípulos. Traçam a linha para o infinito, com a mesma ansiedade de uma primeira aula, mas ao mesmo tempo com a mesma intensidade de um daqueles inesquecíveis encontros com os seus alunos. À maneira de Chico Anysio, digo aos professores que eu não tenho medo que morram, eu tenho é pena que eles tenham de ir.

Quando um professor morre, uma parte de seus alunos também parte. Parte porque partes deles não mais pertencem a eles mesmos, senão ao mestre. Serão força para onde quer que ele tenha ido leccionar. No entanto, a maior partida, porque repartida, é a do próprio mestre, que resta partilhado em cada caderno, cada palavra, cada conselho, cada momento e cada ser iluminado por ele, isto é, cada aluno dele.

Cora Coralina cunhou uma frase, já quase cliché, para se referir aos verdadeiros mestres: “feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.” Apesar de bastante corrente, essa frase é a única assertiva possível quando a resposta é sobre a prova de vida de um professor vocacionado, pois tendo vivido tudo que ensinou, com sabor e com saber, o professor finaliza como sempre quis: transferindo agora não mais só o que sabe, mas também tudo o que foi. No fim, uma coisa é certa, a medida de uma vida é muito pouco para ser assumida por um professor.

In memoriam de Thiago Fabres de Carvalho (26.02.2020), professor de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo e jurista reconhecido pelo trato humano e crítico que dedicava à área criminal no Brasil, um desses professores a que a medida de uma vida foi pouco demais.

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