A insulina, os sistemas de saúde e os fluxos financeiros

Não dar insulina a um doente dependente é como ver alguém pendurado à beira dum abismo e não lhe dar a mão.

A insulina é um medicamento de salvação de vida e por isso pode servir-nos de marcador para compreender a evolução dos sistemas de Saúde e suas características, tal como o que significam na estrutura das sociedades.

No último fim-de-semana de Janeiro realizou-se em Coimbra o Congresso de Endocrinologia, onde estiveram presentes os nossos colegas de Angola, organizados já em Sociedade, tal como estiveram as sociedades de Espanha e do Brasil. Organizar e juntar é preciso. Tal como faço todos os anos, perguntei aos colegas de Angola se a insulina já era comparticipada pelo Estado angolano e mais uma vez fiquei a saber que não. E a indignar-me, tal como eles (demasiado discretamente?).

A insulina foi descoberta em 1921, por esse motivo foi atribuído o Prémio Nobel a Banting e Macleod, que o partilharam com Charles Best e Collip, pois a história da investigação é por sua vez interessante e complexa, mas não vem para aqui essa peripécia. A partir dessa data foi possível salvar a vida a pessoas com diabetes tipo 1 e algumas tipo 2, que morriam em coma diabético. Situação grave, mortal e de grande sofrimento. Passou a haver insulina por extracto de órgãos de animal (boi, porco) e depois foi possível a síntese, o que também é interessante quando se fala em medicamentos “naturais” e “químicos”, visto que as de síntese são melhores, mais precisas e não contaminadas. Mas também isso não vai aqui ser desenvolvido.

Descoberta a insulina foi uma euforia para as pessoas diabéticas, tal como foi com a estreptomicina depois da Segunda Guerra para as pessoas com tuberculose. Foi uma euforia para as pessoas com diabetes que a podiam comprar…

Em Portugal, durante a ditadura, até ao 25 de Abril, a insulina só era gratuita para as pessoas que apresentassem atestado de pobreza passado pelas câmaras ou pelas juntas de freguesia, quando estas existiam. Perante o atestado a insulina era-lhes facultada na actual Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP), na altura Associação Protectora dos Diabéticos Pobres, ou por postos da Santa Casa da Misericórdia. Para os outros, que não eram “pobres”, sobretudo para essa legião de “remediados”, categoria muito portuguesa que não faz parte das classificações científicas, a insulina era comprada, tal como as seringas e as agulhas. Era comprada quando era possível… Os outros entravam em coma e morriam.

Ainda depois do 25 de Abril, persistia na APDP a “sala dos comas”, onde ressuscitavam os doentes com soro e insulina e estes ficavam registados para medicação posterior. Estavam na “grande” metrópole e beneficiavam disso, tal como nos hospitais centrais de Coimbra e Porto. Os outros…

Foi preciso chegar ao ministério de Maldonado Gonelha em 1983-85, depois de já publicada a lei do SNS e depois de muita discussão, para a insulina ser comparticipada a 100%. E depois de intercalado o governo de direita, só em 1995-1999, no ministério de Maria de Belém Roseira, passaram a ser facultadas as tiras-teste para leitura de glicémias e foi proposto o “passaporte” para pessoas diabéticas, com registo das várias patologias associadas, premiado pela Organização Mundial da Saúde. Depois veio a Lei de Bases de 1999, a ascensão dos privados de que tanto se tem falado e não vamos repetir as graves consequências que isso teve para o SNS e para a sociedade portuguesa. Só de realçar que quanto ao cuidado das pessoas com diabetes, os privados não se têm chegado muito, tal como agora não se chegam com a ameaça do coronavírus. Ele há patologias que queimam… Quanto às máscaras protectoras, estão a um preço um pouco mais alto. O mercado é o mercado.

Descrita a importância da insulina e da insulinodependência, não dar insulina a um doente dependente é como ver alguém pendurado à beira dum abismo e não lhe dar a mão. Pois é o que sucede nos Estados Unidos da América, onde quem não tem seguro e não tiver dinheiro, o que geralmente coincide, morre. Tanto mais que o preço da insulina é naquele país muito superior, tal como com outros medicamentos, visto que não há regulação, nem um Serviço Nacional de Saúde (SNS) que negoceie em bloco para todo o país com a indústria farmacêutica, tal como sucede, e bem, em Portugal e nos outros países europeus. Aquele é o país de Trump e dos seus apoiantes e eleitores. O país do elogio da concorrência, do mercado, do indivíduo, do salve-se-quem-puder, sendo que muitos não se salvam. Para onde irá o Reino Unido (agora pouco unido) depois do “Brexit”? O que acontecerá ao National Health Service, já tão debilitado pelos governos conservadores? E o que dirão a isto os nossos liberais, mais ou menos brutamontes, e sobretudo os seus seguidores?

Infelizmente é também o que se passa em Angola. Em Angola, a insulina, que é um medicamento considerado life saving pelos organismos internacionais, não é comparticipado pelo Estado. É administrado nos hospitais públicos ou privados quando os doentes que chegam lá entraram em coma ou em pré-coma, mas depois têm alta e são deixados na natureza. A insulina compra-se, mas entrou no mercado livre e no mercado paralelo, variam os preços, para quem tem dinheiro manda vir de Portugal ou vem cá comprar. Quanto aos outros, dizia-me um colega: “Recebo uma criança ou um jovem, trato-o no hospital, ele recupera, dou-lhe alta, mas sei que algum tempo depois vai morrer.”

Estas populações africanas, que foram sujeitas à escravatura, através da qual os países europeus, entre eles Portugal, fizeram a sua acumulação de capital à custa de sangue e sofrimento (não me venham cá com relativismos históricos!), depois sofreram a opressão e exploração do colonialismo, as guerras pós-coloniais e agora a exploração do capital mundial sem cor, que viaja à velocidade de um click, toca e foge, esperava-as este modelo de repetição histórica das nossas estruturas, em que de facto primeiro imperou a pigmentação da pele (como continua a imperar nas antigas “metrópoles” que se mantêm boçalmente racistas, como se vê) para passar a imperar a relação das classes sociais e do poder e a exploração que umas exercem sobre as outras.

Há anos respondia-me uma minha interna angolana, candidata a especialista, e agora presidente do colégio na Ordem dos Médicos de Angola, perante os meus protestos pelo facto de um papel, um documento, nunca mais vir de Luanda devido à burocracia: “Pois, nós aprendemos bem com vocês [os portugueses].” De facto.

Em Angola, o Estado não comparticipa a compra da insulina que salva vidas, mas paga aos numerosos centros de hemodiálise privados que têm aberto pela capital e em todo o país. A maior parte das pessoas que faz hemodiálise e com razão são insuficientes renais resultantes do facto de terem diabetes sem tratamento ou com tratamento insuficiente. Ou seja, não há um serviço público para pagar bem mais barato a montante mas há muito dinheiro para pagar a privados o resultado a jusante, cuja necessidade não se nega. Ao menos isso. O fluxo financeiro escusava era de ter vindo buscar a inspiração à antiga “metrópole”, onde só no ano de 2018 o Estado pagou em exames complementares de diagnóstico e hemodiálise a quantia de 734 milhões de euros (Relatório e Contas SNS 2018, ACSS)! As racionalidades de custos embatem sempre no mesmo ponto, seja no presente, seja no passado: o interesse e o poder dos privados e de quem os defende. (Agradeço ao meu colega Luís Gardete as informações que me prestou).

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