O feriado negativo

Instituição contra as instituições, o Carnaval pode comemorar a liberdade ou o absurdo da vida, ou comemorar apenas o riso, que não é muito menos.

O Carnaval dá bons exemplos do modo de ser português, a começar pelo modo português de ser burocrático. O Carnaval é um feriado religioso, um dia em que tradicionalmente não se trabalha em atenção a um calendário religioso. Só não é um “dia santo”, na terminologia católica, dada a exuberância do seu paganismo e o desregramento dos festejos. Por outro lado, não é um “feriado nacional”, por não comemorar façanhas da Nação. A consequência negativa que a nossa mente burocrática retira da falta de rótulo é que o Carnaval “não é feriado” segundo o léxico oficial. Por isso, todos os anos se assina um despacho a conceder “tolerância de ponto" aos funcionários públicos na terça-feira de Entrudo, e as negociações de trabalho não podem esquecer-se de juntá-la aos dias de folga a convencionar. Assim se multiplicam os actos administrativos e as cláusulas dos acordos, a bem do consumo de papel e do formalismo geral. Um ou outro governo da direita penitencial não quis fazer o despacho, e nesses anos quase não houve feriado. Trabalhadores menos enquadrados têm de ter esperança no espírito de folia do patrão. Surpreendentemente, as escolas, talvez por serem para crianças, fazem férias de Carnaval com autorização do ministério.

Dir-se-á que isto bate certo com o próprio Carnaval, que é tempo de ser aquilo que não se é e em que nada parece mal. É tempo de homens vestidos de mulher, criados vestidos de senhores, crianças a fazer de adultos e adultos a fazer criancices. E é tempo de negação da autoridade, com reis e ministros em caricatura, falsos padres e bispos em procissão. Que as leis digam que não é feriado até aumenta a paródia. O Carnaval também é tempo de violência encenada, bisnagas e guerras de fruta, bombas de mau cheiro e bichas-de-rabear. A coacção do Estado não há-de assustar, e o Carnaval permite esconder a cara atrás de caraças e mascarilhas.

O Carnaval ainda diz alguma coisa sobre o nosso modo histórico e geográfico. Os carnavais que mais valem a pena são em sítios que já não são Portugal, da festividade sambada, sexual e célebre do Brasil aos desconhecidos rios de gente nas ruas da Bissau sem Estado. Bissau enche-se em cortejos de grandes máscaras coloridas feitas de sacos de cimento reutilizados como papel-machê, ao som de batuques e fanfarras, no meio da festa generalizada e ocasionais cenas de pancadaria. Mesmo no Brasil, o Carnaval é negação, como palavra que sobrou da “proibição do Entrudo”. Parece que o Entrudo brasileiro do séc. XIX tinha demasiada violência e plebeísmo, certamente de origem portuguesa, e portanto não se podia manter.

Como sinal do futuro, faltaria ao Carnaval ser moderno e globalizável, ou pelo menos falar inglês. A sisudez protestante não se dava bem com o Carnaval. Para cumprir o princípio negativo, como é preciso em qualquer sítio, os americanos têm as máscaras, as partidas e as bruxas nas vésperas do Dia de Finados. Nós já importámos o Halloween. O Carnaval antigo, pagão e católico, torna-se obsoleto e pode ser abandonado, consumando a sua negatividade na inexistência. Não será preciso explicar às tróicas do futuro que um país semi-falido não quer trabalhar num dia útil de Fevereiro. Talvez o Dia de Finados, que não é mesmo feriado, fique com o exclusivo da negatividade. O novo Carnaval a 31 de Outubro, Todos-os-Santos a 1 de Novembro, e os outros mortos, canonicamente adiados para o dia 2, talvez deixem de justificar cemitérios floridos muito visitados pelos vivos. Os cemitérios protestantes também são diferentes dos nossos.

Claro que o Carnaval pode ser outras coisas, embora mais abstractas. O Carnaval é o inverso da hipocrisia, é a homenagem que a virtude presta ao vício. Instituição contra as instituições, pode comemorar a liberdade ou o absurdo da vida, ou comemorar apenas o riso, que não é muito menos. Meramente humano, há-de encontrar nova ideologia ou moda que o salve e não seja incompatível com a natureza do país...

Sugerir correcção
Comentar