Costa arguido?

Que o PM quis, com a sua reconhecida sageza, antecipar-se politicamente e estabelecer uma espécie de cordão sanitário ao redor de Azeredo Lopes é uma evidência política. Mas essa já não é uma questão de Direito.

Desde a revisão do Código de Processo Penal​ (CPP) de 2007 que a regra passou a ser a da publicidade do processo criminal e o segredo a excepção. Distingue-se o segredo interno do externo. O primeiro vincula os sujeitos e participantes processuais e o segundo contende com a comunidade em geral, onde se incluem, por exemplo, os jornalistas, excepto nos casos de delitos como a corrupção, em que qualquer pessoa se pode constituir como assistente do Ministério Público (MP).

No “processo de Tancos”, com a acusação cessou o segredo de justiça interno, o que implicou que os sujeitos processuais, sobretudo os arguidos, pudessem ter acesso a todos os elementos probatórios constantes dos autos, o que os habilitou a requererem a abertura da fase da instrução, eventual, em que agora nos encontramos, presidida por um juiz. 

O PM foi arrolado como testemunha num desses requerimentos apresentados por um dos arguidos e já aqui me pronunciei sobre a forma como o mesmo deveria ter sido inquirido. A questão que agora se coloca é a de saber se há violação do segredo de justiça numa fase em que, por lei, já não há segredo interno. 

Tudo está em saber se uma testemunha pode, por qualquer meio, reproduzir o seu depoimento, ainda por cima na página oficial do chefe do executivo, este último um órgão de soberania, sob o pretexto de não haver leituras incompletas ou enviesadas do que escreveu nas respostas às perguntas de Carlos Alexandre. Não curarei de saber da elegância ou não de tal acto, pois o Direito é uma região normativa autónoma da ética ou da deontologia. 

A publicidade do processo implica, de entre outros aspectos, a “narração dos actos processuais, ou reprodução dos seus termos, pelos meios de comunicação social” (art. 86.º, n.º 6, al. b) do CPP), o que não foi o caso. O art. 88.º dispõe que, para os media, pode haver responsabilidade penal, pelo crime de desobediência simples (pena de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias), se a “reprodução (…) de documentos incorporados no processo” (como sucede com o depoimento de uma testemunha) ocorrer antes da data em que é lida a decisão final (sentença ou acórdão) em 1.ª instância. Tal comporta excepções que, para o caso vertente, não relevam.

De todo se pode dizer que o disposto no referido art. 88.º do CPP tem igualmente por destinatários participantes processuais como as testemunhas, dado que o elemento literal de interpretação das normas é claríssimo. Já em sede de teleologia do inciso (a razão que levou o legislador a criá-lo), podia dizer-se que o meio usado pelo PM é semelhante aos media, ao ter usado a página oficial na internet. Todavia, o princípio da legalidade processual penal não admite esta interpretação, porquanto a mesma importaria a responsabilização criminal de alguém sem expressa previsão legal. Não se pode falar em lacuna (hipótese da vida social que o Direito devia regular e não faz), julgo, mas mesmo que tal se admitisse, o art. 1.º, n.º 3 do CP veda que se colmate uma lacuna com recurso à analogia (casos semelhantes), como aqui sempre seria o caso.

A questão torna-se mais complexa quando se confronta o disposto no art. 90.º do CPP, sobre – no que aqui importa – a obtenção de certidão de um qualquer processo. Ele prescreve que basta que uma pessoa demonstre ter “interesse legítimo” para requerer à autoridade judiciária, no momento, o juiz de instrução, que se extraia certidão de auto ou de parte dele, embora possa o juiz determinar que esse cidadão fique proibido de reproduzir os seus termos “através dos meios de comunicação social”. Ora, o PM não requereu qualquer certidão a Carlos Alexandre, mas também não usou, tecnicamente, os media. E, pelo que acima expus, não se pode fazer uma interpretação extensiva e muito menos uma integração analógica do preceito, por importar responsabilidade criminal de alguém, seja ele PM ou qualquer pessoa.

Poder-se-á debater, no plano do Direito a constituir, se esta situação rara deve ou não merecer tutela criminal. Mas, de momento, penso que a mesma a não tem. Para essa discussão haverá de ter em conta o princípio regra da publicidade do processo e a circunstância de o legislador ter somente equacionado as hipóteses em que são os media a reproduzir peças processuais ou documentos dos autos, ou a utilizá-los para atingir esse objectivo, punindo algumas dessas hipóteses com o crime de desobediência.

Numa época em que é já um lugar-comum dizer que o segredo de justiça é de Polichinelo, tenho dificuldades em entender como, em processos como este, em que – tanto quanto se sabe – não está em causa a protecção, na actual fase de instrução, de direitos de sujeitos ou participantes processuais, se pretenda colocar em letra de forma mais um obstáculo ao público esclarecimento dos factos. Que esta ausência de previsão legal habilita que muitos depoimentos, declarações de arguidos, ofendidos ou assistentes sejam conhecidos na íntegra antes de decisão final, assim contribuindo para um indesejável julgamento na praça pública, é uma evidência. Mas a realidade mostra-nos que isto acontece todos os dias sem que, por rectas contas, ninguém se importe particularmente.

Que o PM quis, com a sua reconhecida sageza, antecipar-se politicamente e estabelecer uma espécie de cordão sanitário ao redor de Azeredo Lopes é uma evidência política. Mas essa já não é uma questão de Direito.

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