Ode à Utopia na arquitectura

A Utopia inerente ao projecto de arquitectura contém um potencial fantástico como ferramenta crítica e geradora de diálogo transversal a toda a sociedade.

Quando escreve Utopia em 1516, Tomás Morus (Sir Thomas Moore) invoca um navegador Português de nome Rafael Hitlodeu como seu narrador. É através da voz deste personagem que Tomás Morus sugere um mundo novo, uma outra realidade possível que, embora nasça da crítica à realidade política e social do séc. XVI da qual o autor, como adido de Henrique VIII, é parte nevrálgica, acaba por ir muito além desta na proposta de uma alternativa que continua a fazer os leitores de Utopia sonhar.

Também ao projecto de arquitectura é intrínseca esta característica que fascina arquitectos e não-arquitectos desde sempre: o poder de sugerir outros mundos, de questionar de forma construtiva o agora, de propor Utopias. Permitam-me abordar quatro pontos centrais para a minha interpretação de Utopia neste contexto específico:

Primeiro, o porquê de eu acreditar que a Utopia é inerente ao projecto de arquitectura: por definição, projectar refere-se ao idealizar algo novo num determinado contexto. Afinal, um projecto é o atirar de uma ideia para o futuro [1].

Segundo, é imperativo distinguir a Utopia do Espectáculo. A Utopia é complexa, o Espectáculo é redutor. A Utopia liberta através da responsabilização, o Espectáculo oprime através de uma subjugação implícita ao status quo. A Utopia propõe o ultrapassar das expectativas, o Espectáculo coloca o normal como bitola [2].

Terceiro, a Utopia no projecto não exclui a prática da arquitectura como prestação de serviços, pelo contrário, pois uma informa a outra num diálogo construtivo entre escalas de projecto e dever cívico.

Quarto, é no uso desta capacidade de projectar para fora da escala e perímetro impostos pela conjuntura actual que reside a oportunidade de o arquitecto se assumir como elemento proactivo na sua sociedade. O movimento para o exterior destes limites é essencial para a alteração e redefinição dessa mesma conjuntura, como demonstrado, por exemplo, pelas propostas de Boullée, de Le Corbusier ou de Cedric Price que sugerem cenários inviáveis nos seus contextos mas fulcrais para a redefinição do plano do possível através do debate que promovem.

No horizonte internacional, tanto no contexto da prática como no meio académico, parece existir uma consciência emergente da necessidade e benefício em activar a utopia no projecto de arquitectura. Arquitectos como Sam Jacob no Reino Unido, Dogma na Bélgica, Neyran Turan ou MOS nos EUA, e Made In na Suíça colocam a capacidade crítica e propositiva do projecto de arquitectura no cerne da sua obra. Especialmente os Made In que, com VOLUPTAS – a sua cadeira de projecto na ETH Zurique – convidam os alunos a olharem para a realidade com uma distância crítica. Os projectos dos estudantes surgem como evocações ricas e complexas de questões que, embora partam da realidade, seriam impossíveis de formular se a ela se limitassem. Outras escolas estão no mesmo caminho, através de professores como Cédric Libert em Versailles, ou Marina Otero Verzier na Royal Academy of Arts, para referir dois de uma longa lista.

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Imagem do projecto proposto pelo atelier Made In no concurso para o museu nMCBA em Lausanne, Suíça, em 2011

Em Portugal, num panorama onde, num primeiro olhar e com óbvias excepções, o projecto se me apresenta ou como uma extensão construída do ego do arquitecto, ou reduzido a uma procura naive por uma qualquer intuição de beleza, o mais recente trabalho de Pedro Campos Costa surge como uma reacção cheia de vitalidade. As montagens de construções evidentemente impossíveis em imagens base claramente datadas fazem de Lisbon Vertigo um projéctil cheio de potencial para o questionar de um conjunto de linhas orientadoras que teimam em se assumir como leis naturais no acto de pensar a cidade de Lisboa.

A série de imagens simples aborda de forma óbvia temas como a construção em altura, a museificação e identidade da cidade mas promove também de forma mais subtil uma reflexão acerca de questões de definição de propriedade, de espaço público e, acima de tudo, de envolvimento por parte de todos os que são afectados pelas impossíveis torres, reposicionando o arquitecto não somente como prestador de um serviço mas também como cidadão.

Uma busca mais dedicada mas certamente incompleta pela utopia na arquitectura portuguesa actual levou-me a projectos entusiasmantes como o trabalho de Pedro Bandeira – com destaque para o reposicionamento da ponte D. Maria no Porto em 2013 –, os projectos promovidos por Ana Jara e Lucinda Correia com o atelier Artéria ou um filão de projectos associados e secundários das várias edições da Trienal de Arquitectura de Lisboa ou do Mês de Arquitectura da Maia, que fazem uso do seu potencial crítico e propositivo com uma alegria contagiante.

A Utopia inerente ao projecto de arquitectura contém, como tentei expor, um potencial fantástico como ferramenta crítica e geradora de diálogo transversal a toda a sociedade.

Para activar este potencial, basta ter a coragem e a generosidade para o assumir, propondo em cada projecto um Rafael Hitlodeu que conte a história de uma outra realidade melhor.

[1] Ver Bernard Cache, Projectiles
[2] Ver Guy Debord, Sociedade do Espectáculo

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