A guerra 2020: loucos contra fanáticos

O que se revela mais perigoso é precisamente o carácter errático, caótico e quase alucinado do novo rumo da intervenção americana

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Estados Unidos mataram general iraniano em ataque com drones e helicópteros Reuters/EVA UZCATEGUI

No final do artigo anterior sobre a abertura dos anos 20 deste século, referi uma data crucial de Novembro próximo em que estaria em jogo o futuro da democracia: Trump or not Trump that’s the question. Mas não foi preciso esperar muito – e muito menos pela data das eleições presidenciais americanas – para perceber até que ponto o destino do mundo pode estar suspenso da loucura de um homem e do fanatismo de outros milhões.

Mal 2020 começara, Donald Trump decidiu ajustar contas com os iranianos que, dias antes, tinham estimulado o assalto à embaixada americana no Iraque. Numa aparente reviravolta da sua mil vezes repetida intenção de retirar as tropas americanas do Médio Oriente, Trump fez uma nua e crua declaração de guerra ao Irão mandando matar o homem mais influente da sua elite militar: o general Soleimani.

Como quase sempre acontece, Trump insiste em ver as coisas pelo ângulo oposto ao da lógica mais elementar e em contradição radical consigo mesmo. Ele não teria contribuído para começar uma guerra mas para evitá-la, segundo confessou num dos seus imparáveis tweets. De qualquer modo, não fosse o diabo tecê-las, lá enviou 3500 militares americanos para a região turbulenta da qual prometera sair. Ainda não sabemos que tipo de guerra vem aí, mas que ela virá é absolutamente certo, com a loucura de Trump a estimular o fanatismo iraniano e a contribuir para que a recente crise social na antiga Pérsia – de que resultaram mais de três centenas de mortos, abatidos à bala pelas milícias do regime de que Soleimani era figura-chave – se transforme num movimento unitário de massas contra a assassina e odiada América. Sim, a loucura de Trump está em linha e conformidade com o fanatismo obscurantista do regime iraniano. E o problema são os terríveis custos dessa mortífera sintonia, evocando tragédias e sonambulismos históricos que vêm assombrando a humanidade (e, nos últimos dois séculos, desde a Grande Guerra de 1914/18).

Evidentemente, poderá dizer-se que esta é uma previsão exagerada e, até, demasiado apocalíptica. Mas se tivermos em conta as forças obscuras e cegas que se enfrentam neste palco e respectivos bastidores – e que não se limitam apenas à loucura de Trump e ao fanatismo iraniano – prever o pior talvez seja a forma mais lúcida e eficaz de tentar evitá-lo. Esta é uma questão que não diz respeito apenas a americanos e iranianos, mas a todos os governos e povos que poderão ser arrastados para o abismo. Autocratas como Putin e Erdogan, por exemplo, não resistirão à tentação de prosseguir a demarcação geopolítica do território explosivo do Médio Oriente, apesar dos insondáveis riscos e ameaças que configuram a nova estratégia de Trump (embora essa estratégia esteja aparentemente a ser desenhada no sentido oposto ao propósito anterior de retirada americana, como pareciam confirmar os casos sírio, líbio ou afegão). Aliás, o que se revela mais perigoso é precisamente o carácter errático, caótico e quase alucinado do novo rumo da intervenção americana numa geografia marcada pela intensidade dos conflitos bélicos e que, para já, do outro lado da barricada esteja um regime supostamente disposto a tudo (a partir do momento em que se não arriscar corre o risco de morrer).

Os antecedentes desastrosos da política americana no Médio Oriente desde a invasão do Iraque, baseada em factos falsos que viraram o feitiço contra o feiticeiro – e acabaram também por favorecer o expansionismo iraniano no antigo país inimigo – tinham, pelo menos, uma narrativa aparentemente coerente (embora fosse efectivamente uma mistificação). Ora, desta vez, nem isso se vislumbra. Se a América está ainda a pagar as consequências do que aconteceu no tempo de George W. Bush, agora o que se antevê é apenas o som e a fúria da loucura de Trump e do fanatismo iraniano. Cada vez mais, Trump or not Trump that’s the question.

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