O teu prazer é o meu prazer

Vivem-se tempos de incertezas e de renegociação em relação aos padrões de sedução. Talvez seja inevitável.

Falávamos sobre sedução. Ele, alemão, há cerca de um ano a viver em Lisboa, lamentava-se que em Portugal as mulheres não tomavam a iniciativa de aproximação, seguindo um padrão de sedução que já não faria grande sentido. Para ele, movimentações como o #MeToo haviam servido para colocar em causa os homens que não fossem claros nas suas acções, mas também para libertar as mulheres de guiões de atracção mais convencionais. Na sua visão, qualquer pessoa tem direito à auto-objectificação, participando tanto homens como mulheres nos rituais de desejo de forma igualitária.

Não é difícil concordar que passamos por um momento de renegociação em relação ao paradigma dominante e heteronormativo de sedução. A questão é como seduzir o outro, sendo transparente, quando a sedução se baseia também na ambiguidade. A própria palavra esconde um híbrido semântico que tanto nos reenvia para a persuasão, como para a ideia de atrair alguém para obter uma relação sexual. Até nas representações do cinema, publicidade e do sistema de comunicação em geral parece existir um guião ou uma síntese mental, em que o homem toma a iniciativa de uma aproximação física e a mulher mostra, inicialmente, resistência, antes de poder sucumbir à sedução.

Assume-se que é o homem quem inicia a actividade, dada a sua conjecturada maior impulsividade sexual. Perante esta acção espera-se que a mulher seja uma espécie de guardiã do sexo, marcando os limites do contacto, expondo-se com menor frequência a situações de intimidade, se não quer ser percebida como fácil. Um dos problemas desta narrativa simplista e assimétrica, mas que ainda parece ser o arquétipo preponderante, permeando a nossa cultura e condicionando comportamentos, é que contém elementos que podem ser associados a situações de abuso.

Por um lado, a resistência simbólica atribuída à mulher pode conduzir alguns homens a persistir nos avanços físicos, apesar de essa oposição ser autêntica. Por outro, também pode haver mulheres que interpretem esses avanços contra sua vontade como fazendo parte do guião naturalizado da sedução, o que nos pode levar a questionar se o consentimento do avanço sexual se resolve com um sim explícito da mulher.

Neste paradigma é como se o prazer sexual das mulheres ocupasse um papel secundário e as suas expressões de resistência ou consentimento pudessem ser simuladas. Por outro lado, e esse era o ponto do alemão, os homens carregam com o peso da iniciativa e mesmo aqueles que desejam solidarizar-se com as mulheres não sabem como o fazer, ficando agarrados ao papel que lhes foi atribuído por um modelo onde a vulnerabilidade parece não ter lugar.

Vivemos um momento de dessincronização entre o lugar a que chegaram as mulheres com as justas lutas de emancipação e uma certa perplexidade masculina, sobretudo heterossexual, sendo necessário destrinçar entre comportamentos prepotentes e construção do desejo. É essencial encontrar elementos com os quais trabalhar para impedir abusos e moldar novos guiões para relações físicas e emocionais mais livres e equitativas.

Para isso talvez tenhamos que passar este estágio onde vivemos em estado de prevenção ou de falta de erotização. E como dizia o filósofo Franco Berardi, “se perdermos a percepção erótica do outro, a humanidade está perdida”, porque o corpo do outro é a continuação sensível do nosso corpo. O seu prazer é o nosso prazer.

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