A reforma adiada, mas necessária na saúde pública em Portugal

Na saúde pública moderna não chega observar, descrever e documentar, é imperativo intervir ativa e positivamente.

Nota introdutória: a Saúde Pública (não confundir com serviços públicos de saúde) é definida como “a arte e a ciência de prevenir a doença, prolongar a vida e promover a saúde através de esforços organizados da sociedade” (Acheson, 1988; OMS). As atividades visam reforçar o sistema de ação e as melhorias nos serviços de saúde com o objetivo de manter os cidadãos saudáveis, melhorar a sua saúde e bem-estar e prevenir a sua deterioração. 

O 1.º Congresso Nacional de Médicos de Saúde Pública foi organizado pela Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública e decorreu em Aveiro, de 9 a 10 de dezembro.

Apesar da reconhecida carência de recursos ao serviço da Saúde Pública, a disciplina tem evoluído exponencialmente nos últimos 50 anos. O lançamento da estratégia “Saúde para todos no ano 2000” (OMS, 1977) dinamizou os serviços de saúde orientando-os para objetivos focados na promoção da saúde, na prevenção da doença e nos determinantes da saúde, e distanciando-os da clássica definição patológica utilizada na medicina curativa.

Renovada pelas estratégias “Saúde 21” e “Saúde 2020” (OMS Europa, 1998 e 2012), que aumentaram o potencial e o âmbito da intervenção em Saúde Pública, acrescentou-se a responsabilidade de trabalhar as necessidades de saúde da população de um modo focado e estruturado, e sublinhando a urgência em garantir serviços organizados que dominem estratégias baseadas em evidência, custo-efetivas e eticamente aceites. 

Agrava-se hoje em Portugal a necessidade de repensar os serviços de saúde pública e de os dotar de recursos próprios e ferramentas, contratualizando-se com base em indicadores populacionais — constantemente desenvolvidos e atualizados — resultantes de planeamento estratégico, e monitorizando-se, não apenas a implementação, mas também o tão esquecido impacto das múltiplas atividades, projetos e programas no estado de saúde das comunidades. É crucial que estes serviços sejam ágeis e equidistantes, e que liderem a gestão destes programas garantido a sua transversalidade aos diversos níveis de prestação de cuidados de saúde.

Salienta-se hoje que a carência de profissionais e especialistas em saúde pública ou da sua disponibilidade horária (porque não poucas vezes o seu tempo é alocado a tarefas incipientes) colide com a crescente complexidade de interações a que uma comunidade está sujeita e que condiciona o estado de saúde da mesma. Prova desta complexidade é o cada vez maior leque de competências recomendadas a estes profissionais. 

A prática moderna da saúde pública inclui não só as disciplinas clássicas (Medicina, Epidemiologia e Bioestatística), mas também um cada vez maior número de disciplinas sociais, comportamentais e humanísticas, necessárias à compreensão das dinâmicas populacionais. Esta multitude de competências são mostra da multidisciplinaridade que a prática da saúde pública implica, não as isentando, contudo, de comportamentos organizacionais estilo “torre de Babel”, resultando em entropia e disparidade na execução diária das atividades nos serviços de saúde pública.

Por outro lado, saúde pública é uma disciplina que pela sua abrangência e multiplicidade incute o sentimento de que todos a praticam por defeito, mas que deve ser orientada e atualizada na melhor prática e evidência científica. Em Portugal, os serviços de saúde pública de âmbito local (Unidades de Saúde Pública — USP) desenvolvem atualmente as suas funções ao abrigo do Decreto-Lei n.º 137/2013 de 7 de outubro, tendo por base as Operações Essenciais de Saúde Pública da OMS.

A estas funções soma-se o exercício do poder de Autoridade de Saúde (delegado de saúde), no cumprimento da obrigação do Estado de intervir na defesa da saúde pública, conforme o artigo 5.º do Decreto-Lei nº 135/2013 de 4 de outubro. No entanto, e apesar da clareza legislativa, não existe uma matriz tão transparente utilizada para guiar as atividades executadas diariamente nas USP. Esta matriz, fundamental para harmonizar a prática entre pares, continua pendente, bloqueando ou adulterando o processo de contratualização anual às atividades das USP e alienando-a da realidade das restantes unidades funcionais do Serviço Nacional de Saúde.

É fulcral clarificar o que representa uma melhor gestão da saúde da população, e a redação de uma proposta de quadro orientador (e normativo) para as USP, cimentada na ciência baseada em evidência e na gestão de relacionamentos e atores. Esta discussão com vista à clarificação de processos deve ser liderada pelos próprios profissionais, já que em último caso devem ser eles a responsabilizarem-se — junto da população, junto dos parceiros e dos decisores políticos — pelo estado de saúde da população. Em troca desta responsabilização pelo estado de saúde de uma população, deve ser garantida a autonomia técnica e de recursos necessária para atuar e modificar positivamente o mesmo. Na saúde pública moderna não chega observar, descrever e documentar, é imperativo intervir ativa e positivamente. 

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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