Carta de Natal

Refugiamo-nos na família e nos amigos mais próximos, desistindo do papel de cada um na res publica. Até ao dia em que, como Brecht escreveu, “Agora estão a levar-me./ Mas já é tarde./ Como eu não me importei com ninguém, / Ninguém se importa agora comigo.”.

Já não tenho idade para escrever cartas ao Pai Natal ou ao Menino Jesus. Tanto quanto me lembro, nunca as escrevi. Desde cedo tive a consciência que os presentes eram fruto do trabalho abnegado dos meus pais.

Com 42 Natais em cima, a magia associada a esta quadra há muito se esfumou, mas espero não ter perdido o seu espírito. Como acredito em Deus, celebro o nascimento do Salvador, de modo não ritualizado, por preferir uma relação directa com a divindade, muito minha, sem grandes regras e procurando ater-me ao essencial. As ruas iluminam-se, o comércio tem no Natal um dos seus momentos altos e há muito o consumismo substituiu o espírito inicial das comunidades cristãs.

Julgo haver espaço para tudo. Confesso que cada vez recebo menos presentes e isso de todo me importa. Também apenas os dou aos de casa e a alguns amigos mais próximos. O essencial é a presença ao longo de todo o ano. As felicitações com “Boas Festas” são amiúde uma mera formalidade que se cumpre por ficar bem, mas mesmo essas recebo com a ideia de que enquanto o ser humano se dedica a dizê-las ou escrevê-las, algumas moléculas adormecidas conhecem qualquer sobressalto, ainda que de muito baixa intensidade.

A idade adulta trouxe-me a convicção de que nós, seres humanos, desmentimos diariamente a crença de Rousseau numa bondade originária. Já me caracterizei como pessimista antropológico moderado e a minha vivência pessoal tem reforçado esse posicionamento.

É também tempo para algum balanço, que não deve ser exagerado, sob pena de crise existencial profunda, se bem que é dela que brota o “re-nascer”. O ano que está a poucos dias de encerrar marcou-me, no essencial, pelo alarme de sentimentos desumanos que sempre existiram em Portugal, como em qualquer outro país, mas que agora têm palco em órgãos de soberania, na comunicação social e nas mesas de café. A racionalidade, a frieza e objectividade de análise nas decisões comunitárias estão a ser substituídas por um discurso fácil, de raiva, de ódio e de intolerância para com o diferente.

Todos conhecemos este momento da vida colectiva. Estes sentimentos provêm de uma incapacidade de as instâncias formais darem resposta às legítimas aspirações dos cidadãos, pelo que se o sistema se não reforma, a História mostra-nos que implode e é substituído por outro, em regra autoritário, desigual, em que cada Estado se fecha sobre si mesmo e rejeita a pluralidade e a abertura ao outro.

E Natal é isto mesmo: abertura ao outro, ao que é diferente. O Menino e a sua Família eram diferentes e por isso foram perseguidos. Já na altura havia muito ódio e desejo de manutenção do status quo. Quem clamava por justiça e se relacionava com os proscritos foi morto. Cada vez há mais semelhanças entre aqueles tempos e os que vivemos hoje no planeta Terra. Houve perseguições como hoje há e continuará a haver em 2020. No que toca a esta nossa amada Nação, tal como os sinos tocarão a rebate pelo nascimento de Jesus, também nós deveremos tocar a rebate as nossas consciências, reflectindo sobre que espaço público desejamos: um onde impere o ódio e a intolerância ou um outro que se caracterize pela abertura ao diferente e pela tentativa de compreensão do alienus.

Sei bem que a população está em grande parte revoltada com o que o pós-25 de Abril não trouxe. Sei bem que há muita gente a sofrer com a corrupção, os desmandos, os amiguismos que levam os dinheiros públicos para fins privados. E isto é um rastilho de pólvora incomensurável. Que vai rebentando aqui e além. E que rebentará ainda mais em 2020. Ninguém tem receitas mágicas, mas o único caminho é a reforma do sistema político-partidário sem “pré-conceitos”, limpando as casas de cada um, doa a quem doer.

Sei bem que isto é um desejo igual à carta ao Pai Natal. Mas se mantivermos a cabeça enterrada como a avestruz, os populismos radicais avançarão, por se alimentarem da ineficácia do sistema, bastando clamar por “vergonha” e propor votos de condenação ou júbilo que não têm qualquer efeito prático na vida dos Portugueses, mas que marcam uma posição. Quem defende essa ideologia sabe que basta apontar os vícios do sistema – que são muitos – para capitalizar votos, pois pouca gente se pergunta por soluções alternativas. O radicalismo que aí está vive de e para a denúncia inconsequente, por certo importante, mas que, na prática, de pouco adianta. Simplesmente, como as pessoas já não acreditam no Pai Natal, basta atirar-lhe com pesados bonecos de neve. O bonacheirão cai e o que o substitui é uma navegação à vista, ora para a direita, ora para esquerda, ao sabor do clamor público.

Refugiamo-nos na família e nos amigos mais próximos, desistindo do papel de cada um na res publica. Até ao dia em que, como Brecht escreveu, “Agora estão a levar-me./ Mas já é tarde./ Como eu não me importei com ninguém, / Ninguém se importa agora comigo.”.

Espero, contudo, que a Luz nos ilumine e que, para além de uma quadra feliz, possamos no próximo ano ser fautores de pontes e não de muros.

Boas Festas!

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