Reféns da sociedade da quantificação

Pensar em formas alternativas de avaliar a performance económica e o progresso social quando os modelos actuais se revelam insuficientes para descrever a situação real de um país parece um passo no caminho certo.

Vivemos em permanente medição, quantificação e avaliação. Nada escapa. Coisas, pessoas, actividades ou instituições. Obcecados com números, indicadores, pontuações, rankings, ratings ou likes, já nem nos damos ao trabalho de pensar. O nosso espaço mental é uma tabuada. Consumimos percentagens como se fossem ansiolíticos. Vivemos em cálculo permanente. Desiste-se de elucidar, de reflectir ou persuadir.

Puxa-se, triunfante, do papel com a estatística que mais nos serve e dispara-se números a toda a hora. Como se isso, por si só, bastasse. Como se os números não resultassem de enquadramentos ou contextos particulares e não pudessem ser alvo das mais diversas leituras. Como se não fosse fácil manipular números, com leituras de causa e efeito entre duas variáveis, quando o que existe tantas vezes é uma correlação entre diversas variáveis, ou com ilustrações de tendências dominantes, quando tantas vezes são as micro-tendências as mais reveladoras do que aí virá.

Os números são indicadores relevantes para tentarmos decifrar a realidade, mas o sentido acrítico com que lidamos com eles dá que pensar. Às vezes, na forma como os recebemos, mais parecem mitos que se explicam por si próprios. Era o filósofo e ensaísta espanhol Daniel Innerarity que dizia que quando não entendemos uma sociedade, passamos o tempo a medi-la e quantificá-la. E o drama é quando calculamos a partir de erros de base. Parece que estamos nesse patamar.

Quer dizer, nem todos. A Islândia quer mudar a forma como olhamos para a performance da economia. Avaliar a quantidade, mas articulá-la com qualidade, equidade, sustentabilidade e bem-estar. Na semana passada ficou a saber-se que a primeira-ministra Katrin Jakobsdottir comprometeu-se a que o país implemente uma politica económica que atribuía prioridade ao bem-estar das famílias e aos cuidados a ter com o meio ambiente, em vez de encarar simplesmente a economia segundo a tese do crescimento. O governo tratará de aplicar as ideias do Nobel da economia, o americano Joseph Stiglitz, que assegura há muitos anos (tendo voltado a essa ideia há semanas) que o PIB já não é fiável porque não reflecte fenómenos como a degradação ambiental ou as desigualdades. De que vale o PIB crescer se os principais beneficiados forem uma pequena minoria e a maior parte dos cidadãos estiver pior?

Em vez de basear toda a análise da economia na evolução do PIB, o governo islandês deseja conciliar factores como a educação, saúde, boa governança, cidadania, saúde da democracia, protecção ambiental, acesso à cultura ou gestão equilibrada do tempo. O ponto é que são necessárias melhores ferramentas para avaliar o desempenho económico e as dinâmicas sociais. O tema não é novo. Intensificou-se com a crise económica global de 2008, que pôs a nu a deficiência das medições dominantes, incapazes de antecipar o que vinha aí e de reflectir as consequências do que se seguiu, ao nível da magnitude do sofrimento das populações, e volta a ser referenciado na altura em que é apresentado um Pacto Ecológico Europeu que muitos defendem que só pode ser consequente com mudanças de paradigma económico.

O PIB até pode crescer, mas ocultar situações de extrema desigualdade, dispensar os mecanismos democráticos e concorrer para a exaustão dos recursos do planeta. Pensar em formas alternativas de avaliar a performance económica e o progresso social quando os modelos actuais se revelam insuficientes para descrever a situação real de um país parece um passo no caminho certo. Não basta mudar a forma como validamos os indicadores da realidade para que a realidade mude. Mas é um princípio.

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