O dia em que deixei de ouvir música nos transportes

Havia sempre um conselho qualquer dado pelo Julian Casablancas, o Jim Morrison, o Stuart Murdoch, o Nick Drake, o Manel Cruz ou o Alex Turner. Os phones eram o escudo do dia-a-dia. Não havia batalha perdida por falta de defesas.

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Ross Sneddon/Unsplash

Nem todos os rituais são precedidos de velinhas de cheiro, tapetes esticados ou pedras esculpidas a rigor. Muitos são só a forma de nos abstrairmos do mundo ruidoso e uma maneira de ser rotineiro, contudo, de um jeito peculiar. Fazemos os rituais por nossa livre e espontânea vontade e nomeamo-los a nosso bel-prazer. Tornamo-los nossos com o tempo. Quando somos crianças, pertencemos à seita dos amigos da bola, dos companheiros do “esconde-esconde” ou dos comparsas da apanhada. Não havia dia em que não evocássemos os sacerdotes do divertimento e os xamãs da despreocupação. Em adulto, são os nossos pequenos momentos repetidos a compasso, descompassados da correria dos dias, que nos dão a serenidade em falta. São rituais, sejam eles quais forem e usem a máscara que usarem.

Quando a música me foi introduzida, os meus dias passaram a ter uma cor diferente. A sépia foi substituída pelos acordes menores das canções tristes e o monocromático alavancou-se ao baixo para deixar de aparecer nos entretantos. Os pêlos do meu buço multiplicavam-se ao mesmo ritmo dos clássicos dos The Doors. As formas de chegar até à música variavam sempre. Começando pelo discman azul, recheado com cd pirateados (não sejamos hipócritas, antigamente até a nossa família pirateávamos, se conseguíssemos) e com faixas das quais só entendia o sentimento; saltitando entre um mp3 perdido lá por casa e um iPod oferecido a muito custo num Natal já distante.

Por fim, a mudança drástica de conjugar música, o Santo Graal da abstracção, com tudo o que fosse mundano e me chamasse à realidade, como quem diz: o telemóvel. Todos eles eram o veículo sagrado que trazia até mim os sonhos cantados no acorde “futuro maior” e as letras definidoras de todos os momentos vividos desde a entrada na escola, até ao segundo no qual voltava a colocar os phones e a entrar no meu mundo. Era uma retrospectiva da vida depressiva de todos os adolescentes; hoje, ao longe, parece um parque de diversões do qual queremos “só mais uma voltinha”.

Neste período, que consagra o meu Neolítico até à minha Revolução Industrial, deixei-me educar pela melodia que me ritmava a vida. Era o tempo no qual pedia a pés juntos (e só eu sei a dificuldade de os unir!) para o autocarro parar em todos os semáforos, se enganar na rota ou apanhar as obras de Santa Engrácia lá pelo meio. Só não podia chegar rápido, que ainda tinha tanto álbum para ouvir, tantos sonhos para pôr em prática no palco que montei na minha cabeça. Ali, era o cantor principal, o baterista, o guitarrista e até o trompete me passava pelos lábios.

Havia sempre um conselho qualquer dado pelo Julian Casablancas, o Jim Morrison, o Stuart Murdoch, o Nick Drake, o Manel Cruz ou o Alex Turner. Pareciam saber a minha história de cor e salteado. Fazia perguntas com mais de duas linhas e 33 “mas”, e eles lá sacavam de uma rima que deitava ao chão a mínima dúvida existente. Não tinham limites, o cabelo deles já havia visto melhores dias, mas todos me conheciam melhor do que eu próprio. Faziam-me crescer pêlos no peito a cada rima mais ordinária ou a cada jura de amor metafórica a retratar a minha vida.

Os phones eram o escudo do dia-a-dia. Não havia batalha perdida por falta de defesas. O meu maior medo era sempre quando chegava o momento de alguém rebentar a bolha que a tanto custo soprei. Um “Olá! Como é que estás?” que me fizesse tirar um dos phones era parecido a um pesadelo mais demorado, a acabar comigo a hiperventilar, enquanto interrompia uma serenata feita numas escadas de uma cidade qualquer, já construída por mim após dois singles ouvidos até à exaustão.

Há uma semana comprei carro. Tenho 24 anos e a vida passou a dar-me uma música diferente. Hoje, já não uso phones, já não vou de bochecha colada ao vidro de um autocarro com mais pessoas do que dentes do siso e já não posso adormecer no sovaco de alguém bem posicionado num banco, que a dada altura se assemelhava a um trono. Deixei de ouvir música nos transportes, mas mais que isso: enterrei um ritual. Há outros momentos a fazerem-me viver histórias que não a minha, mas este capítulo fechou-se. É a vida adulta a irromper da forma que sabe: sem avisar, de um jeito aleatório e a deixar saudades das canções trauteadas no caminho para as responsabilidades (ou para a falta delas).

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