José Mário Branco punk

Sabíamos que o Zé Mário Branco eram um dos nossos. Não nos enganámos e ele não nos enganou.

Faço parte de uma geração que talhou parte de sua consciência política ao som dos discos dos Dead Kennedys, dos Clash e dos Black Flag, à mistura com as paisagens urbanas dos Joy Division e a revolta visceral dos Birthday Party. Para trás, ficara a infância a ouvir, por osmose, os cantautores que eram a banda sonora pós-revolucionária, a ponto de quase ter decorado todas as canções do espectáculo 25 Canções de Abril que, em 1977, tinha feito uma espécie de best of desses tempos.

Nessa fase final da adolescência era natural desprezar, nem que fosse só por abstermo-nos de ouvir, as músicas que tinham sido dos nossos pais. Adrianos, Godinhos, Fanhais, Tordos eram arrumados na mesma prateleira de esquecimento onde também um dia os nossos progenitores tinham colocado o fado.

Havia, no entanto, um que resistia a esta lógica geracional, o José Mário Branco. É evidente que o José Afonso, pela genialidade, também tinha um espaço reservado próprio, mas o homem “do Porto, mais vivo que morto”, era capaz de estar na discografia, entre o hardcore norte-americano e o post-punk de Manchester.

Claro que o documento, spoken word, dir-se-ia quase rap, como lembrou Nuno Pacheco, chamado FMI era um dos grandes responsáveis por essa preferência. Afinal, quantos é que poderiam gabar-se de ter traduzido o “no future” em “antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir, cabrões de vindouros, hã? Sempre a merda do futuro, e eu que me quilhe, pois pá, sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu hã? (...) Eu sou parvo ou quê? Quero ser feliz porra, quero ser feliz agora, que se foda o futuro, que se foda o progresso”.

Mas não era só. Naquela torrente de palavras nós identificávamos alguém verdadeiramente livre. Para nós, que não percebíamos muitos bem as nuances do marxismo-leninismo versus maoismo ou as diferentes tendências de esquerda saídas do PREC, ali estava alguém que não virava à direita, mas também não encaixava na ortodoxia do PCP. Como lembraram Rui Tavares e João Miguel Tavares – tão distantes, mas tão de acordo – aquilo que nós pressentíamos é que ele, mesmo não tendo correntes nem cabelos espetados, nunca abdicaria do individualismo e da liberdade e era a partir deles que partia a sua revolução.

E nós que acreditávamos na “inquietação” como uma forma de estar na vida sabíamos que o Zé Mário Branco eram um dos nossos. Não nos enganámos e ele não nos enganou.

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