Quanto vale um habeas corpus?

É feio aparecer em bicos de pés à custa de dramáticas situações humanas em que os seres quase só conservam o epíteto de “humanos” à custa de um desgraçado nominalismo.

A decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que indeferiu a providência de habeas corpus só surpreenderia se tivesse sido inversa. Os cidadãos que a impetraram bem sabiam, ou não podiam ignorar, que este não é o instrumento jurídico adequado para aferir da correcta qualificação a que a juiz de instrução criminal (JIC) procedeu para aplicar a mais grave das medidas de coacção, ou seja, a prisão preventiva.

Donde, tendo em conta que um deles é candidato a bastonário da Ordem dos Advogados, é evidente que visou o protagonismo. É de tal forma grave o leque de hipóteses a que se aplica o “habeas corpus”, com origem histórica na Idade Média britânica, em que o monarca proferia a ordem de “que venha o corpo”, “que me seja presente quem clama por justiça”, que qualquer cidadão pode peticionar a providência e a mesma corre perante o mais alto tribunal judicial, o STJ, que decide no prazo máximo de 8 dias.

O “habeas corpus” é uma providência extraordinária para situações também elas nada vulgares: detenção ou prisão ilegais. No caso, o art. 222.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (CPP) estabelece que se pode aplicar numa de três situações: prisão efectuada ou ordenada por entidade incompetente (a JIC era competente em função dos critérios do CPP); ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite (se qualificada juridicamente como o foi estamos perante indícios fortes da prática de crime doloso punível com prisão superior a 5 anos e em que há indícios de risco de fuga ou de perturbação da tranquilidade pública – o suposto argumento usado de perigo de continuação da actividade criminosa não tem qualquer sentido); ou quando se mantenha para além dos prazos, o que de todo é o caso. O que supostamente pretendiam os requerentes era discutir se estaríamos ou não perante indícios da prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada (artigos 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), e 22.º e 23.º, todos do Código Penal), ou seja, se a mãe queria a morte de seu filho, mas só não o conseguiu por motivos estranhos à sua vontade, no caso, a intervenção muito louvável de um sem-abrigo que ouviu o choro do bebé. Qualificado, na medida em que as circunstâncias para já conhecidas sem dúvida permitem concluir por uma “especial censurabilidade ou perversidade do agente”, dando a lei como exemplo-padrão provocar a morte a descendente.

Se o que desejavam os advogados era discutir se o dolo da agente seria só o de exposição ou abandono (art. 138.º do CP) ou de infanticídio (art. 136.º do mesmo Código), então deveriam ter-se oferecido à arguida (que já tem defensor nomeado nos autos) para, se ela quisesse, a passarem a representar e, junto da Relação de Lisboa, discutirem exactamente isso por via de recurso a intentar nos 30 dias posteriores ao despacho que aplicou as medidas coactivas.

O mais é praticar um acto processualmente inútil e aí estarão as custas processuais para o efeito (fixadas entre 6 e 30 unidades de conta, ou seja, 612 € a 3060 €). Mas, por vezes, parece que algumas pessoas acham que tal nada é comparado com os cinco minutos de fama a que dizem que todos nós temos direito. Não é assim que se afirma o Estado de Direito nem se dignifica a advocacia, do mesmo modo que em qualquer eleição não vale tudo para ter a atenção dos “media”.

Mais útil teria sido os requerentes lançarem uma campanha de recolha de fundos para os sem-abrigo ou, mesmo integrado no seu programa eleitoral, pugnarem por uma melhoria do sistema de acesso ao Direito, com propostas concretas.

É feio aparecer em bicos de pés à custa de dramáticas situações humanas em que os seres quase só conservam o epíteto de “humanos” à custa de um desgraçado nominalismo.

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