Flamengo na Libertadores em tons de vermelho

Agora que a saga vitoriosa de Jorge Jesus por terras de Vera Cruz trouxe o Flamengo para as conversas futebolísticas deste lado do Atlântico, recordemos um passo da caminhada do “Fla”, onde na altura jogava Mozer, para a sua primeira, e única, Copa Libertadores. Em 1981, escreveu-se uma página triste na história do futebol brasileiro.

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Os jogadores do Atlético Mineiro protestam com o árbitro DR

Talvez nunca se saiba exactamente de quem foi a ideia de tecer figuras geométricas no relvado do estádio Serra Dourada, em Goiânia, para o jogo de desempate da fase de grupos da Copa Libertadores entre o Flamengo e o Atlético Mineiro. Certo, certo, é que naquele dia 21 de Agosto de 1981 as duas equipas entraram num campo que mais parecia o delírio alucinogénio de algum pintor modernista. Se esta inusitada decoração influenciou o estado mental dos intervenientes na partida, também é coisa que ficará por esclarecer, mas há fortes indícios de que algo não esteve bem.

Para começar, o desfecho: o Flamengo ganhou por inferioridade numérica do adversário. Isso mesmo: aos 37 minutos do primeiro tempo (!), o Atlético Mineiro ficou reduzido a seis unidades e o jogo não pôde prosseguir. Como é que se chegou a este desvario? O que levou o árbitro José Roberto Wright a expulsar cinco jogadores em pouco mais de meia hora?

Porque o tema está mesmo a pedir uma abordagem, chamemos-lhe assim, liberal em termos estilísticos, vamos aqui adoptar a velha fórmula dos filmes românticos. Na primeira parte, o rapaz conhece a rapariga. O “rapaz” é o Flamengo, na sua primeira participação na Copa América. Que o enorme “Fla” só então se estreasse na maior competição de clubes da América do Sul já é, em si, notícia, mas adiante, que há muito para contar…

A primeira fase da competição repartiu 20 equipas por cinco grupos de quatro e os vencedores da cada um juntaram-se ao campeão da edição anterior, o Nacional de Montevideu, Uruguai, na ronda seguinte. Dois grupos de três apuravam o primeiro classificado para a final. O “rapaz” Flamengo conheceu a moça Libertadores e apaixonou-se por ela. Mas então – e entramos no segundo acto – esteve em risco de a perder. Porque, pelo meio, surgiu o rival, o Atlético Mineiro.

As duas equipas, que na época anterior tinham protagonizado uma decisão polémica do campeonato brasileiro, ganho pelo Flamengo, terminaram igualadas na frente do seu grupo, com oito pontos. Teria de se realizar um jogo de desempate, mas, como o Flamengo tinha melhor diferença de golos, o empate bastava-lhe para seguir em frente. Entremos então no caleidoscópico relvado do Serra Dourada e juntemo-nos aos 65 mil espectadores nas bancadas, para assistirmos ao momento em que o Flamengo desbrava caminho para recuperar a rapariga. Leia-se: Copa Libertadores, para os mais distraídos.

“Não mudaria nada, nada, nada!”

A partida decorreu num clima de grande tensão. Antes do jogo, trocaram-se acusações de subornos e corrupção. No relvado, sucediam-se as entradas duras e então o árbitro José Roberto Wright, um dos nomes mais sonantes da arbitragem do Brasil, decidiu chamar os capitães das duas equipas para fazer um aviso.

“O Wright me chamou, chamou o Cerezo também e disse: ‘Avisa lá, quem fizer a primeira falta por trás, eu vou botar para fora.’ Eu fui lá, reuni o pessoal do Flamengo e falei”, recorda Zico, o capitão do Flamengo. Do outro lado, o seu homólogo, Toninho Cerezzo, terá feito o mesmo com a equipa do Atlético, mas houve quem não acreditasse. “O Reinaldo virou p’ro Nunes e disse: ‘Duvido, não vai expulsar ninguém!’ Então, foi uma expulsão mais do que lógica. Ou você se impõe ou é engolido”, recorda o árbitro.

O que aconteceu – e vamos contar com a ajuda de Mauro Beting e André Rocha, autores do livro “1981” – foi que Reinaldo, jogador com um registo disciplinar impecável, ceifou Zico por trás a meio-campo. O árbitro puxou do vermelho. Gerou-se a confusão. Diz-se que o juiz estava nervoso. Rodeado por jogadores do Atlético Mineiro, entregou a bola ao Flamengo, que marcou de imediato a falta. Um dos árbitros assistentes ainda estava dentro do campo…

A seguir foi Éder, que esbarrou no árbitro. Duas vezes. E foi expulso. O banco do Atlético invade o terreno de jogo. Polícia, o costume. Reata-se a partida e, aos 36’, Palhinha resolve dizer a Wright que não era homem nem era nada e que não tinha coragem de o expulsar. Terceiro vermelho. Chicão aproxima-se para sugerir ao árbitro que expulse alguém do Flamengo para compensar. Vai para a rua. Palhinha regressa ao terreno de jogo e leva consigo Alexandre, para que este diga das boas ao árbitro e acabe expulso, inviabilizando a continuação da partida. Mas o árbitro recusa-se a expulsar mais quem quer que seja. Então, o guarda-redes João Leite atira-se para o chão, simulando uma lesão. Wright não gosta e mostra-lhe mesmo o cartão vermelho.

Nas bancadas toda a gente se cala quando percebe que, com apenas seis jogadores em campo, o Atlético Mineiro não pode continuar o jogo. A partida termina aí. “Tudo igualzinho. Não mudaria nada, nada, nada”, garante José Roberto Wright.

O Flamengo, onde jogava o ex-benfiquista Mozer, acabou por conquistar nesse ano a única Copa Libertadores do seu historial, fechando o círculo e conquistando a moça no final. O melhor marcador da campanha foi um tal de Arthur Antunes Coimbra, Zico de bola nos pés. Melhor ainda: unidos com a mesma camisola, jogadores do Flamengo e do Atlético Mineiro enfeitiçaram o mundo no Mundial 82, em Espanha. As voltas que o futebol dá…

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