A solidariedade de um povo e a vergonha de um Estado

Como podemos não ficar incrédulos perante um país que, repetidamente, insiste em demonstrar-nos que não tem condições para suportar as despesas decorrentes das várias doenças crónicas dos nossos dias?

Quem, como eu, percorre os corredores dos hospitais e frequenta consultas das mais diversas especialidades médicas, numa luta contra o tempo e contra os efeitos de uma doença neuromuscular, crónica, rara, progressiva, altamente incapacitante e profundamente injusta para alguém que, como qualquer pessoa normal, alimenta sonhos com uma inteligência superior e que é meu filho…

Quem, como eu, há mais de 22 anos, na qualidade de dirigente associativo deste grande grupo de doenças raras, convive diariamente, para além das suas, com as dificuldades de muitas famílias em aceitarem diagnósticos difíceis, que condicionam toda uma vida, que invadem uma estabilidade familiar como se, repentinamente, de qualquer fenómeno sísmico estranho se tratasse, que partem em busca de respostas e de aconselhamento técnico, e que, a partir desse momento, sentem que o tempo passou a ser um dos seus maiores inimigos…

Tem muitas razões para estar desapontado com os novos tempos.

Esperei alguns dias para tornar público este meu sentimento de revolta, e toda a indignação que ele possa representar.

Para não parecer politicamente incorreto.

Para não ser conotado com qualquer promessa eleitoral, decorrente do período de campanha que atravessámos.

Para não ferir suscetibilidades de pessoas, ou perturbar os motivos e as necessidades de decisão superior que me ligam a elas, quando elas estão ligadas a órgãos decisores.

Para não causar má impressão.

Enfim, por muitas outras razões que me vão cansando e me vão tornando menos tolerante com o meu país.

Há alguns anos, alguém muito especial para mim ensinava-me, repetidamente, uma lição que despertou o meu interesse pelo próximo. Dizia-me que “no tempo em que andarmos por cá, devemos deixar alguma coisa que marque a nossa passagem pelo mundo. Caso não sejamos capazes de o fazer, de pouco terá servido por cá termos andado”. Hoje, sinto essas palavras como muito atuais, verdadeiras e, ainda, das mais motivadoras para continuar a minha luta.

Uma luta que envolve pessoas que combatem um sistema criado por elas. Com legislação, com regras e doutrinas apregoadas por elas. Com um moralismo tendencialmente moderno, que pode culpar os sistemas tecnológicos, criados por elas, para justificar as falhas e a ausência de soluções que, justamente, elas não têm para nos dar. Que pena o meu ensinamento não lhes ter chegado, também, a elas.

Como podemos não ficar incrédulos perante um país que, repetidamente, insiste em demonstrar-nos que não tem condições para suportar as despesas decorrentes das várias doenças crónicas dos nossos dias?

Como podem, as famílias, suportar os sucessivos adiamentos, e as consequentes falsas justificações para que o “nosso” Serviço Nacional de Saúde não forneça atempadamente, tal como o legisla, os necessários tratamentos e meios complementares de diagnóstico e terapêutica para essas doenças?

Como podemos permitir que, nos serviços de maior proximidade às populações, nomeadamente no interior e fora dos grandes centros urbanos, não exista qualquer recurso público às necessárias terapias (fisioterapia, terapia ocupacional, terapia da fala, hidroterapia, etc.), e que nos digam que o país em que vivemos vai, pela primeira vez em muitos anos, apresentar excedentes orçamentais?

Como podemos aceitar que sejam as condições e as conveniências dos serviços, ou dos seus responsáveis, a decidirem se um doente neuromuscular, crónico, raro, pode e deve, ou não, beneficiar das sessões de fisioterapia, ou de outras terapias que lhe são indispensáveis para a manutenção da amplitude dos seus movimentos e da sua condição física, que lhe vão sendo roubados pela doença, e que impõem uma degradação à sua qualidade de vida? Mesmo que essa urgência, e a sua absoluta necessidade, estejam amplamente demonstradas clinica e cientificamente, em todo o mundo?

Como podemos deixar-nos envolver por tantas afirmações que, na sua (in)certeza clínica, apenas pretendem continuar a esconder a necessidade desses tratamentos, e a incapacidade do SNS em prestá-los?

Tenho passado os últimos anos à procura de respostas para todas estas, e muitas outras, perguntas. Falando com altos responsáveis da saúde, com médicos das mais variadas especialidades, com administradores hospitalares, com governantes, com políticos, com jornalistas, mas, sobretudo, ouvindo os pais de crianças que lamentam a ausência de um acompanhamento eficaz e atempado para os seus filhos, e alguns portadores de doenças neuromusculares, já adultos, que são sistematicamente empurrados para os sistemas convencionados. Estes estão totalmente entupidos, desorganizados e sem os profissionais qualificados necessários. A presença de doentes neuromusculares apenas serve para os mapas estatísticos que os financiam e já poucos aqui têm lugar.

Tal como muitos dos cidadãos mais atentos, verifico que entrámos na era das redes sociais solidárias. Essas, que invadem a nossa curiosidade e que nos conseguem sensibilizar para qualquer história comovente, muitas vezes real. As redes sociais que divulgam NIB’s, IBAN’s, números de telefone e endereços de correio electrónico pessoais, programas de festas e outros eventos solidários com o objetivo de uma recolha de fundos, destinados a colmatarem as necessidades financeiras dos casos reais. Que incitam à recolha de tampinhas sem explicar, claramente, como tudo se vai processar. Que, de forma clara e, muitas vezes, apoiada por figuras públicas, na tentativa de aumentar a visibilidade, apelam, sensibilizam e mostram, até, caras inocentes de crianças doentes. Sempre em nome de um propósito final que permita adquirir produtos de apoio, tais como cadeiras de rodas, das mais simples às mais complexas, ou outras ajudas técnicas. Que permita pagar tratamentos de reabilitação funcional ou respiratória, urgentes. Tudo isto com a finalidade clara de procurar ajudar aqueles de quem o “Estado Social”, há muito, se esqueceu…

Incrédulo, olho para os motivos que levam cada vez mais famílias desesperadas, com diagnósticos de doenças neuromusculares, ou outras também graves, que aprenderam uma lição de solidariedade popular através da mediatização do caso da “bebé Matilde”, e da sua repercussão, implorando por ajuda para suportar os custos dos tratamentos de reabilitação e das terapias que permitam minimizar os efeitos da doença e o sofrimento dos seus filhos ou familiares. Muitas associações, do domínio recreativo, desportivo ou social, numa tentativa de cumprirem os seus desígnios, acabam por se envolver em todos esses processos, sempre debaixo de um aparente e confortável olhar do nosso “Estado Social” e dos organismos, sem exceção, a quem essas responsabilidades sociais competem.

Vergonhosamente, e aproveitando a fragilidade, a falta de argumentos e de respostas concretas do nosso SNS, muitas “clínicas” e muitos centros de reabilitação privados, dos maiores aos mais rudimentares, posicionam-se para fornecerem as “terapias” necessárias, mesmo que, para isso, não disponham de terapeutas, ou de técnicos, devidamente credenciados para esse efeito. Em Portugal, para as doenças do neurónio motor como a ELA, a SMA (Atrofia Muscular Espinhal), nos seus vários tipos, ou para as miopatias como a distrofia de Duchenne e Becker, ou congénitas, nas neuropatias como a Charcot-Marie-Tooth e outras, todas elas pertencentes ao grupo das neuromusculares, os terapeutas com a formação e o treino necessário são mesmo muito poucos, para não dizer inexistentes. Estranha-se, por isso, que agora, ao abrigo de um compromisso mais social, até se vendam anos completos de tratamentos.

Também, vergonhosamente, o Estado olha para tudo isto em silêncio, comprometido com a opção de não gastar os seus (nossos) recursos, e com uma poupança escondida por “contas certas”.

Mas quais são as contas certas? Aquelas que, por falta de investimento, sacrificam as pessoas?

A solidariedade não pode ser isto! A solidariedade de um povo não pode nem deve suportar os custos de uma saúde que já é custeada pelos nossos impostos. Não pode encobrir uma duplicação de custos quando, nos hospitais, os processos de acompanhamento de doentes externos servem apenas para os financiarem, e que, em enormes listas de espera, estas pessoas aguardam meses até serem chamadas para umas míseras sessões de tratamentos, sem a qualidade exigida e necessária. Mantêm, assim, o direito ao financiamento dos processos em aberto, e sem alta. Enquanto isso, incitam as famílias para que se dirijam ao médico de família, a fim de que lhes possa ser, ilegalmente, emitida uma credencial, destinada aos centros convencionados onde, como já vimos, nada de melhor se passa, ou se oferece.

Em nome de uma miserável poupança nos seus já pobres orçamentos, os responsáveis técnicos e políticos olham, de forma acomodada, para todo o desfile de peditórios que lhes permitirão apresentar algumas décimas nas percentagens positivas dos seus rácios de gestão. Por isso, não intervêm. Por isso, não se manifestam. Com esse silêncio, vão incitando cada um de nós a encontrar a solução para um problema que, afinal, não é nosso.

A solidariedade popular, e quase sempre, social, não pode ser confundida com uma obrigação legal, e constitucional, do Estado. Deve, pelo contrário, servir para apoiar algumas ações que esse mesmo Estado não tem o dever de suprir. Portugal já demonstrou a sua capacidade para ultrapassar grandes dificuldades, de apoiar causas nobres, de vencer obstáculos, de recuperar financeiramente, de se reconstruir e de se posicionar como um povo vencedor.

Para que essa solidariedade não se degrade, não deixemos que nos atribuam as responsabilidades que não são nossas!

Ao novo Governo, agora empossado, deixo este grande desafio.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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