Uma Alemanha (re)unificada na diferença nos 30 anos da queda do muro
A reunificação ainda é demasiado jovem para ser efetiva entre os 83 milhões que constituem a população alemã. Persistem diferenças entre a Alemanha Ocidental e a Alemanha de Leste que não se devem apenas a estes “dois muros”, tendo raízes mais profundas.
A unidade estatal alemã está concluída, mas a própria unidade dos alemães não foi concluída a 3 de outubro de 1990 nem até hoje, conforme sublinhado por Angela Merkel, em Kiel, onde este ano se realizam as comemorações relativas à reunificação da Alemanha sob o tema “Mut verbindet” [“A coragem une-se”].
Também em Leipzig, a 9 de outubro, o Presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, destacou o facto de a Alemanha ser um país que luta para encontrar uma base comum conjunta, sendo a história alemã tão diversa como o são os próprios alemães. Os anos pós unificação foram de difícil transformação e adaptação, sentindo-se ainda hoje o seu impacto.
Em ambos os discursos se referem as dificuldades sentidas pelos alemães da ex-República Democrática da Alemanha que importa superar. Segundo Merkel, menos de 40% dos alemães orientais (ou de leste) consideram que a reunificação foi bem-sucedida, uma percentagem que diminui para apenas 20% no que respeita aos alemães orientais com menos de quarenta anos. Os alemães orientais consideram-se cidadãos de segunda.
Com efeito, comemoram-se este ano três décadas da queda do muro de Berlim, a “cortina de ferro” – recuperando a expressão de Winston Churchill – efetiva, separando o leste do ocidente europeu, dividindo a cidade e o povo alemão. Vinte e oito anos (e mais alguns meses) foi o tempo de duração desta “barreira física”, construída na noite de 12 para 13 de agosto de 1961 pela República Democrática da Alemanha e apenas derrubada na noite de 9 para 10 de novembro de 1989, numa “revolução pacífica, uma revolução no espírito da liberdade”, para recuperar as palavras de Merkel em Kiel.
Pretendia-se, com o muro, conter a fuga de alemães do leste (o que se traduzia numa perda de médicos, engenheiros e outros profissionais necessários ao desenvolvimento da República Democrática da Alemanha) para oeste, algo que se vinha a acentuar desde os anos cinquenta.
Atualmente, dos dezasseis Estados federados que constituem a Alemanha reunificada, cinco pertenciam à República Democrática da Alemanha. Comparando esses cinco Estados com os onze Estados pertencentes à República Federal da Alemanha antes da reunificação verifica-se, de acordo com alguns dos dados apresentados pelo jornal alemão Die Zeit (n.º 35/2019, de 22 de agosto de 2019) recorrendo a fontes oficiais, que a percentagem de população alemã oriental com mais de 65 anos é superior à ocidental (24,8% contra 20,7%). Também é nos Estados orientais que a percentagem de crianças com menos de três anos (52% contra 28%) e a percentagem de mães, com crianças com menos de três anos de idade, que trabalham a tempo inteiro é superior (39% contra 19%). Já a percentagem de população com raízes migratórias é maior nos Estados ocidentais (26,5% contra 6,8% – sem incluir Berlim).
Das quinhentas maiores empresas, a grande maioria tem sede nos Estados ocidentais (463 contra 37), sendo nos Estados orientais que o desemprego é mais elevado (6,6% contra 4,7%) e onde existem mais apartamentos vagos (9,7% – sem incluir Berlim – contra 3,8%). É nos Estados ocidentais que o PIB per capita é superior (40.301 euros contra 29.477 euros), assim como a média do rendimento bruto mensal (3330 euros contra 2690 euros). Desde 1991 e sem incluir Berlim, verifica-se também que o investimento do orçamento federal em infraestruturas de transporte tem sido maior nos Estados ocidentais (296 mil milhões de euros contra 97 mil milhões de euros).
De facto, a reunificação ainda é demasiado jovem para ser efetiva entre os 83 milhões que constituem a população alemã. Recorde-se que o muro situado em Berlim não existe desde há trinta anos (contra os cerca de 28 anos em que esteve construído) e a Alemanha foi reunificada há 29 anos, um período inferior aos 45 anos que permaneceu dividida em duas Alemanhas no pós Guerra.
Porém, será que o contraste existente entre os Estados alemães ocidentais e os Estados orientais se deve apenas a este muro físico situado em Berlim e àquele outro muro (não físico) económico-político e social dividindo a Alemanha em duas Alemanhas, estando uma sob a esfera de influência dos EUA (a ocidental) e a outra sob a esfera de influência da União Soviética (a oriental) durante a Guerra Fria?
James Hawes, autor de A Mais Breve História da Alemanha publicado pelas Edições Dom Quixote, defende que a Alemanha de Leste não se tornou diferente com a divisão e ocupação russa do pós Guerra, porque sempre o foi.
Efetivamente, antes da unificação política da Alemanha verificada pela primeira vez em 1871 sob a ideia de Kleindeutschland [Pequena Alemanha] (deixando de fora a Áustria-Hungria), a Alemanha estava longe de ser como a conhecemos hoje, estando fragmentada em mais de 360 Estados. Havia dispersão política no seu território dada a ausência de um poder centralizado e forte, mas ao mesmo tempo existia uma certa unidade cultural e linguística que viria a impulsionar a criação da Alemanha como Estado.
A incapacidade dos alemães ocidentais se unirem fez com que a unificação ocorresse sob direção da Prússia que, deste modo, conseguiu os recursos necessários para saldar o conflito com os eslavos apenas terminado em 1945. Desde o século VIII que a Élbia Oriental (situada a leste do rio Elba) era eslava, tendo-se germanizado no século XII com a adoção da língua alemã.
Aliás, no pós Guerra, a Alemanha de Leste (a República Democrática da Alemanha) – a tal Élbia Oriental – voltou a ser germanicamente heterogénea, como que “desterrada” numa Europa de leste eslava (Konrad Adenauer, chanceler da Alemanha Ocidental até meados dos anos sessenta, costumava dizer, sempre que chegava a esta região, “Schon wieder Asien” ["Outra vez a Ásia"]; também Christopher Clark, autor de O Reino de Ferro – Uma História da Prússia publicado pela BookBuilders, se refere à “estepe asiática da Élbia Oriental prussiana”). A região integraria de novo a Alemanha Ocidental com a reunificação ocorrida após a queda do muro de Berlim.
Ainda que a Alemanha Ocidental tenha tentado financiar a Alemanha de Leste de forma a que os alemães de leste não abandonassem a região, isso continuou, todavia, a verificar-se, tal como já acontecia desde 1850. “É a Prússia a falar de além-túmulo”, como notado por Hawes. Portanto, para os alemães de leste, a Rússia está “mais próxima” do que os EUA ou a França, ficando isto a dever-se à história da Prússia e não propriamente à da Alemanha.
Consequentemente, persistem diferenças entre a Alemanha Ocidental e a Alemanha de Leste que não se devem apenas a estes “dois muros”, tendo raízes mais profundas. Historicamente, o ocidente é mais industrial, tecnológico e rico, mais voltado para a exportação, ao passo que o leste é mais precário e pertencia aos Junkers dedicados a cargos estatais e militares, preocupado com a importação e tendo os alemães aqui existentes a necessidade de vir para ocidente em busca de melhores condições de vida (a Ostflucht, ou fuga do leste).
Daí que para Merkel, a chanceler alemã que, tendo nascido em Hamburgo (no ocidente), acabou por se mudar ainda em criança com a família para o leste, onde cresceu e se tornou cientista, a unidade alemã seja “um processo e uma missão contínuos que afeta todos os alemães independentemente do Estado federado em que vivam”, urgindo “criar, manter e fortalecer”. Até porque a (re)unificação da Alemanha é feita na diferença, como podemos verificar.
Note-se ainda que termina este ano o Pacto de Solidariedade com o Leste, destinado a apoiar financeiramente, a partir do governo federal alemão e dos Estados federados ocidentais, a reconstrução dos Estados orientais. Por outro lado, com o “Brexit", deverá reduzir-se o PIB per capita na União Europeia. A União Europeia será estatisticamente mais pobre e a Alemanha mais rica, sendo que o leste alemão poderá passar a receber menos verbas dos Fundos Europeus Estruturais e de Investimento.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico