Carta aos eurodeputados Nuno Melo, Álvaro Amaro e José Manuel Fernandes

Sabem o que é ter que explicar por que é que não podemos desembarcar? Procurar palavras certas e descobrir que não há palavras certas para “não são bem-vindos”? “Nenhum país vos quer acolher”? “O mundo nunca vos vai ser casa”?

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Reuters/DARRIN ZAMMIT LUPI

Caros eurodeputados Nuno Melo, Álvaro Amaro e José Manuel Fernandes

É com um profundo sentimento de revolta que recebi a notícia das posições que tomaram na passada quinta-feira, em pleno Parlamento Europeu. Tenho lido muitas das vossas argumentações e explorado as propostas apresentadas, mas continuo com as mesmas perguntas. Sou médica e regressei recentemente do Mediterrâneo Central onde me juntei aos esforços da sociedade civil nas missões de resgate e salvamento. Espero que as minhas perguntas vos sejam de resposta tão fácil como a facilidade com que votaram:

Sabem quanto tempo demora um dinghy/bote de borracha a desinsuflar? Uma pessoa a afogar? Um coração a deixar de bater? Sabem quão assustador é assistir à voz a perder-se? O corpo a deixar de lutar? O mar a engolir o que resta? O silêncio a substituir os gritos, a morte a substituir a vida? 

Sabem qual é a sensação de um saco de cadáver demasiado pequeno para uma vida demasiado preciosa? Sabem qual é o cheiro que fica entranhado? O cheiro fétido da perda por negligência irreversível?

Sabem quão escuro pode ser o mar à noite? Quão solitário? Quão doloroso o abandono? Quão doloroso o silêncio do mundo que assiste inerte?

Sabem qual é a sensação de tirar uma pessoa da água? Salvá-la como se estivesse salva para sempre? Sabem qual é a sensação de fazer isso e haver vozes que te tentam convencer que o que fizeste é um crime, errado, punível?

Sabem o que é estar desesperado a tentar retirar da água o maior número de pessoas possível enquanto a milícia (também chamada por alguns de guarda-costeira) líbia aponta armas de fogo na tua direcção? Sabem quem pagou essas armas? Esses barcos? Essa “solução"?

Sabem o que é a dor de receber informação de um barco em distress e não chegar a tempo? Tarde demais? Tarde demais para sempre? Sabem o que é não poder ir buscá-los ao fundo do mar? 

Sabem que feridas doem mais, não só as que já trazem dos países de onde fugiram, mas as feridas dos centros de detenção na Líbia? Serão as violações sexuais? As torturas filmadas para extorquir dinheiro às famílias? A violência física? As cicatrizes por curar? A escravidão por trabalhos forçados? Os pesadelos que não deixam dormir? Os flashbacks de um horror que teima em voltar?

Sabem o que é ter que explicar por que é que não podemos desembarcar? Procurar palavras certas e descobrir que não há palavras certas para “não são bem-vindos"? “Nenhum país vos quer acolher"? “O mundo nunca vos vai ser casa"?

Sabem como é que se relembra a alguém que ainda é pessoa, humana, única e valiosa quando se é tratado como nada? Sabem como é que se contrariam as vozes que insistem que nem todas as vidas merecem ser protegidas ou salvas? Independentemente de quem são ou do que fogem?

Sabem o desespero que leva uma mãe a pôr os filhos num barco sem a certeza de que voltem a pisar solo firme outra vez? Sabem o que morre no coração dessa mãe por ter de correr este risco? 

Sabem o que são 17 mil pessoas mortas, em seis anos, no fundo do mar? Sabem o que são valas comuns, sem enterro, sem luto, sem choro, sem flores?

Hoje o vosso nome assina por baixo de tudo isso. É o vosso nome que assina por baixo desta Europa hoje menos humana, menos solidária, menos casa. É o vosso nome que assina por baixo desta Europa obcecada pela militarização e protecção das suas próprias fronteiras, ignorando — numa indiferença cruel — os que morrem à sua porta. É o vosso nome. 

Mas queria só descansar-vos numa coisa: se algum dia encontrasse as 290 pessoas que votaram contra esta proposta num dinghy a desinsuflar no meio do Mediterrâneo, acreditem que as salvaria, a todas, uma a uma, sem pensar duas vezes, tal é o compromisso com a humanidade. Não com políticas, mas com a humanidade. É isso que continuaremos a fazer e é isso que devem esperar de nós: resistência, desobediência. Sem medo. E quanto à morte desta Europa em que julgávamos viver, queria apenas informar-vos que já fizemos o luto. Agora, começa a luta

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