Tensão em Moçambique: Renamo prepara resposta à vitória esmagadora da Frelimo

O partido fundado por Dhlakama terá perdido a presidência, o parlamento e as dez governações de província. Remeteu-se a um silêncio que pode significar o regresso às armas como resposta a uma suspeita de fraude generalizada nas eleições de terça-feira. Missão da UE diz que testemunhou “enchimento de urnas” em Sofala e Manica.

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Xai-Xai, a capital de Gaza, província onde a Frelimo tem o seu maior apoio político GRANT LEE NEUENBURG
David Sassoli
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Os observadores da UE disseram esta quinta-feira o resultado do seu trabalho: testemunharam enchimento de urnas António Silva/Lusa

Tudo indica que a Renamo terá perdido as hipóteses de conseguir aquilo pelo qual andou a lutar durante tantos anos, a possibilidade de governar alguma coisa em Moçambique. Se não o país, pelo menos as províncias onde sistematicamente tinha mais apoios que a Frelimo. Os resultados oficiais das eleições só são apresentados esta sexta-feira, mas de acordo com a contagem do Centro de Integridade Pública (CIP), Filipe Nyusi terá vencido com 71% dos votos, o seu partido, a Frelimo, terá conseguido uma maioria qualificada no Parlamento e terá ganho as assembleias provinciais, garantindo a eleição dos seus dez candidatos a governador.

A confirmarem-se estes números pelos resultados oficiais será um rude golpe para o partido fundado por Afonso Dhlakama, que esta quinta-feira se remeteu ao silêncio, havendo ordens superiores para não falar à imprensa. O partido estava a preparar um comunicado que, na altura em que o PÚBLICO falou com o porta-voz da Renamo, José Manteigas, ainda não tinha data de divulgação.

“Parece que a Renamo não vai estar disposta a aceitar esses resultados pacificamente”, refere Jaime Macuane, analista político da Universidade Eduardo Mondlane. “E, naturalmente, se o não fizer, isso terá consequências”, consequências que “não são boas” para Moçambique, acrescenta. Nomeadamente, é possível que se faça tábua rasa do acordo de paz, assinado a 6 de Agosto pelo Presidente, Filipe Nyusi, e pelo líder da Renamo, Ossufo Momade, e as armas voltem a fazer ouvir-se, como aconteceu em 2012, quando Dhlakama deixou Maputo para voltar à mata, depois do chefe de Estado Armando Guebuza da altura ter recuado em tudo o que a Frelimo tinha acordado com a Renamo.

De acordo com o CIP, organização da sociedade civil que acompanha os processos eleitorais em Moçambique desde 2005 e vem acompanhando este desde o recenseamento eleitoral, “a Renamo está a boicotar” todos os processos de apuramento de resultados nas comissões distritais de eleições e não vai recorrer à justiça para resolver qualquer contencioso eleitoral, sinal de que o partido da perdiz estará disposto a enveredar por outro caminho que não a via legal disponível para contestar os resultados.

Ambiente de violência interpartidária  

A Missão de Observação Eleitoral da União Europeia, que esta quinta-feira apresentou a sua declaração preliminar sobre as eleições do dia 15, salientou que, “num ambiente polarizado e complexo no qual a violência interpartidária foi prevalente, assim como uma desconfiança entre os principais partidos políticos”, existe uma “falta de confiança que a administração eleitoral e os órgãos judiciais” sejam “independentes e livres de influência política”.

Apesar das respostas de Abdul Carimo, na curta entrevista ao PÚBLICO, a verdade é que, como a UE sublinha, há muitas dúvidas entre os actores políticos, a sociedade civil e parte substancial dos moçambicanos de que a Comissão Nacional de Eleições (CNE) tenha sido capaz de “ser imparcial” e “independente” neste processo eleitoral e “fraude” é palavra que aflora em muitos comentários que se ouvem em Maputo.

A missão de observadores europeus refere-se no seu relatório preliminar aos problemas de recenseamento em Gaza, província onde a Frelimo tem o seu maior apoio político, e que quase duplicou o número de votantes desde 2014, deixando de ser o círculo eleitoral mais pequeno para se transformar no quarto maior, ganhando com isso mais nove deputados no Parlamento nacional.

“A alocação de assentos com base nos números do recenseamento eleitoral, e não nos números do censo populacional, reforça a prática de politizar as estatísticas do recenseamento eleitoral”, salientou o ex-Presidente ganês John Dramani Mahama, na apresentação do relatório da missão de observadores do Instituto Eleitoral para a Democracia Sustentável em África (EISA). Foi uma das declarações preliminares das missões internacionais de observação eleitoral apresentadas esta quinta-feira, que incluiu ainda a da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), do Fórum das Comissões Eleitorais dos Países da SADC, da Commonwealth e da Organização Internacional da Francofonia.

Se todas se pautaram pelo tom mais ou menos conciliatório habitualmente usado pela diplomacia africana, mencionando alguns problemas, mas sancionando a eleição, nenhuma se esquivou a falar no nome de Anastácio Matavel, o observador eleitoral assassinado a tiro pela polícia em Xai-Xai, capital de Gaza, uma semana antes das eleições.

Enchimento de urnas

Na sua declaração, apresentada num hotel diferente de Maputo, Ignácio Sánchez Amor, líder da missão de observadores da UE, salientou que essa morte “teve o efeito de exacerbar o já existente clima de medo e autocensura prevalente”, limitando ainda mais a observação imparcial do escrutínio, a ponto de haver hotéis em Gaza que “tiveram receio de alojar observadores”.

A missão da União Europeia refere que os seus observadores testemunharam “quatro casos de enchimento de urnas em Sofala e Manica”, juntando-se assim às organizações moçambicanas da sociedade civil que denunciaram vários casos de introdução de votos falsos nas urnas. Além disso, contrariando o testemunho do presidente do CNE, a missão europeia escreve que “apesar de terem submetido os pedidos atempadamente, estabelecidos grupos de observadores nacionais tiveram dificuldades com a sua acreditação”.

Isto apesar da explosão de observadores eleitorais nos últimos dias antes das eleições, que levou a que os números oficiais divulgados pelo CNE tivessem passado de 19.900 para 42 mil. Os observadores europeus, liderados pelo eurodeputado Ignácio Sánchez Amor, mencionam isso, salientando que, “durante a votação, os observadores da UE identificaram um número de organizações desconhecidas pela comunidade de observação eleitoral moçambicana”.

“O que resta neste momento esclarecer é como que foi conseguida a vitória da Frelimo: se foi pela via de eleições livres, justas e transparentes? Os sinais que existem é que há algumas manchas neste processo, ficando por definir a amplitude dessas manchas e em que medida é que são um factor para os resultados arrasadores”, afirma Jaime Macuane.

“Temos todos os indicadores para mostrar que as eleições não foram livres, justas, nem transparentes”, responde Edson Cortês, director executivo do CIP. “E não estou a ver outra opção a que Ossufo Momade possa recorrer se não agarrar-se à ideia de fraude, também como forma de ele próprio sobreviver politicamente, de outra maneira, internamente, ele acaba”, acrescenta. Deixando no ar a ideia que preocupa muitos moçambicanos: “Resta saber se ele se vai juntar à ala que está com as armas e aí voltamos de novo à estaca zero”.

O jornalista viajou a convite da Associação para a Cooperação Entre os Povos (ACEP) e do Centro de Estudos Internacionais (CEI/ISCTE), no âmbito do projecto As ONG no Desenvolvimento e na Cidadania, financiado pelo Camões – Instituto da Cooperação e da Língua

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