E a extrema-esquerda? Quando a palavra de ordem é normalizar

O feminismo radical — radical porque pretende ir à raiz — surge da 2.ª vaga feminista e é contemporâneo das lutas pelos direitos civis dos anos 60.

Dez partidos estão representados no parlamento português, circunstância inédita, e motivo de regozijo. Certo? Mais ou menos. Há o travo amargo da visibilidade de André Ventura e das pantominices em torno da eleição de Joacine Katar-Moreira, duas figuras nos antípodas do espectro ideológico, mas cujos nomes têm sido partilhados nos mesmos textos.

Como? Com uma estratégia que tem feito escola nas caixas de comentários dos jornais e que se resume à pergunta retórica — e a extrema-esquerda? — sempre que o propósito da notícia é algum tema da, essa sim, extrema-direita. O nível do esquema é equivalente a contrapor ao racismo o racismo contra os brancos, quando aquele é sempre monopólio de quem tem poder; ou insistir que também há homens vítimas de violência doméstica, quando o prato da balança pende sempre para o lado das mulheres. Este jogo ignora, intencionalmente ou não, o carácter estrutural da opressão e das assimetrias.

O recurso à estratégia de relativizar uma coisa atirando-lhe para cima um sound bite vazio atinge níveis inauditos quando se trata de relativizar o mal que vem ao mundo com a eleição do dito senhor. Face à apreensão coletiva, há quem debite — e a extrema-esquerda, representada há décadas? Joacine Katar-Moreira — para esses temerosos —encarna o exemplo acabado do extremismo, sobretudo porque se apresenta como feminista radical, e, sendo mulher, para mais negra e gaga, reúne os ingredientes certos para deixar os corações reacionários à beira do chilique.

Não vale a pena detalhar o programa de Ventura. Sabemos ao que vem. Nem vale a pena deambular pela petição pública, assinada por mais de 20 mil pessoas, que visa impedir a tomada de possa da “Impatriota”! Mas vale a pena perguntar o que é isso de feminismo radical.

O feminismo radical — radical porque pretende ir à raiz — surge da 2.ª vaga feminista e é contemporâneo das lutas pelos direitos civis dos anos 60. Distingue-se da 1.ª vaga, marcada pela reivindicação de direitos políticos (votar, por exemplo), porque reivindica a igualdade de género e a emancipação das mulheres, nomeadamente em temas como a saúde reprodutiva (contraceção, aborto, maternidade, sexualidade...). As feministas radicais insurgem-se contra a objetificação do corpo das mulheres, apontam o dedo à violência machista, como o femicidio, e desafiam os papéis tradicionais de género, que consideram a principal ferramenta da opressão. Trata-se de uma revolução radical? É para ter medo?

Ventura, um negacionista da crise climática, cavalga a inquietação, infundada, numa cruzada contra o cigano, o imigrante ou — numa misoginia indisfarçável — contra as mulheres. Com ventos da Europa que lhe sopram de feição, a ameaça de arrefecimento económico pode ser a sua cereja no topo do bolo.

A distinção é clara e, curioso, só num dos casos verdadeiramente política. Katar-Moreira luta, última ratio, a favor da igualdade entre pares — incluir-nos-á a todos — e Ventura, por sua vez, luta contra... o Outro. É neste lutar a favor/lutar contra que a distinção se torna cristalina e nela nos devemos focar para perceber que o tão apregoado racismo contra brancos é um delírio que os Venturas tentam tornar coletivo.   

Toleramos os diferendos sobre como trilhar o caminho do “lutar a favor” de Joacine. Mas não poderemos tolerar sem comprometer o caminho civilizacional — já percorrido — o “lutar contra” de André.  É para ter medo?

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