Carta aberta a Beatriz, Joacine e Romualda

Mais de 45 anos depois da ditadura, temos a possibilidade de sentar três mulheres negras na Assembleia da República a tempo inteiro.

Conhecemo-nos há vários e longos anos e estivemos muitas mais vezes do mesmo lado dos combates que importam para a democracia. Em termos de percursos e de filiação militante, tenho relações distintas com cada uma de vós, mas juntam-nos as lutas contra o racismo e pela igualdade.

Por filiação ideológica, sou do Bloco de Esquerda e, obviamente, por condição material e por imperativo de sobrevivência numa sociedade pós-colonial, sou antirracista irredutível, pelo que o meu compromisso político maior é a luta contra o racismo que, naturalmente, obriga a um igual compromisso com todas lutas contra todas as formas de opressão e de desigualdade. Em todos os segmentos da população nacional, os sujeitos racializados são os mais atingidos pelas opressões de classe, raça e género. Esta é condição bastante para, no momento em que vivemos, celebrar as lutas que nos conduziram até aqui e que, hoje, vos coloca na posição de representar as aspirações deste segmento que, há muito, disputa um lugar digno na nossa sociedade.

Assim sendo, sinto a obrigação militante de me dirigir a vós e, com a feliz coincidência de vos saber ligadas pelas vossas origens à terra do Amílcar Cabral, que justamente dizia “antes de sermos africanos (leia-se negros) somos seres humanos. Não podemos permitir que nenhum interesse do nosso povo seja restringido pela nossa condição de africanos”. Ora, perante o debate que se gerou em torno da relevância de candidatos racializados para as legislativas, nunca é de mais reafirmar que não permitiremos que a cor da pele seja usada para desqualificar a justeza e a legitimidade da nossa representação política.

Escolho uma tribuna pública para me dirigir a vós, porque a circunstância é histórica e os desafios que ela convoca são da maior importância para a nossa democracia. Mesmo estando muito convicto de que a ação política não se esgota no exercício da representação parlamentar, tenho a perfeita consciência de que, numa sociedade como a nossa, sem esta representação será mais difícil garantir centralidade política à questão racial no combate às desigualdades, como tem sido até agora.

Mais de 45 anos depois da ditadura e 24 anos depois de Fernando Ka pelo PS e Manuel Correia pelo PCP terem exercido pontualmente mandatos de deputados, temos a possibilidade de sentar três mulheres negras na Assembleia da República a tempo inteiro. Nunca estivemos tão perto de uma mudança de paradigma do ponto de vista institucional que dê a possibilidade de concretizar as agendas antirracistas em programas alavancados em medidas legislativas e políticas públicas de combate às desigualdades raciais.

Dirijo-me a vós porque, de todos os sujeitos racializados, a mulher racializada é aquela que mais sofre a violência das desigualdades e das opressões do sistema capitalista e patriarcal e machista, hegemonicamente branco.

Dirijo-me a vós, ainda, porque sabem o que significa ter filhos que nascem estrangeiros no seu próprio país, não poder arrendar ou comprar uma casa, ser barrado no acesso a um espaço público, ser brutalizado pela polícia ou por seguranças privados, ser condenado a uma pena superior à de uma pessoa branca para o mesmo crime, só pela cor da pele.

Escrevo-lhes porque sabem que, 45 anos depois da ditadura, as pessoas racializadas são ainda aquelas que têm menos acesso à educação, à saúde e ao emprego, daí serem as mais fustigadas pela precariedade habitacional e laboral no nosso país.

Escrevo-lhes porque sabem o que é ser sistematicamente remetido para fora do tecido nacional com a frequente pergunta “donde és?”, mesmo tendo nascido e sempre vivido cá. Há milhentas razões de sobra para me dirigir a vós. Mas, nesta tribuna – num jornal cujo diretor, a propósito da candidatura de Joacine, escreveu que “ser negro em Portugal não deve suscitar nem comiseração, nem estatutos especiais. Nem indiferença” e em que um dos seus cronistas mais influentes sentenciou que “sou branco, homem, e falo do que me apetece” –, é não apenas um ato de solidariedade, mas também uma tomada de posição firme contra a cegueira cromática que banaliza o racismo e desqualifica a centralidade do combate contra o racismo que é essencialmente um combate pela democracia.

Aqueles que não querem ver a vossa cor de pele sabem bem que se a cor da pele não contasse e se ela não condensasse, para além da violência dos estigmas quotidianos, inúmeras camadas de desigualdades que afetam pessoas racializadas, ninguém se lembraria de a chamar à colação na disputa política.

James Baldwin, pese embora as diferenças com Angela Davis, escreveu-lhe em novembro de 1970, quando esta estava presa, uma longa carta aberta, onde dizia: “A enorme revolução na consciência negra que ocorreu na tua geração, minha querida irmã, significa o início ou o fim da América. Alguns de nós, brancos e negros, sabemos como foi grande o preço já pago para gerar uma consciência nova, um povo novo, uma nação sem precedentes.”

Ora, sem a ingenuidade de acalentar o sonho do fim do racismo com a vossa eleição, o que espero é que ela contribua para combater a legitimação política da desigualdade que se ancora num património histórico da violência e da desumanização que ainda sustenta a cultura racista que permanece no imaginário coletivo e atravessa também as instituições do nosso país. Se, portanto, a vossa eleição servir para enfrentar as consequências das continuidades históricas dos legados do racismo ideológico e deitar abaixo o biombo da liberdade de expressão enquanto reabilitador das narrativas e práticas racistas, é possível que se fortaleçam as condições para combater a banalização do racismo.

Este é um dia que alguns em Portugal, tal como dizia Baldwin a Angela Davis, “os americanos nunca esperaram ou desejaram ver, por muito que declarem piedosamente a sua crença no ‘progresso’ e na ‘democracia’. Estas palavras, agora, nos lábios americanos, tornaram-se numa espécie de obscenidade universal: pois este povo extremamente infeliz, com uma grande fé na aritmética, nunca esperou ser confrontado com a álgebra da sua história”. E acrescenta: “O que aconteceu, parece-me, e para o dizer de um modo demasiado simples, é que toda uma nova geração de pessoas avaliou e absorveu a sua história e, nessa tremenda ação, libertaram-se dela, e nunca mais serão vítimas.”

O país precisa de um assomo de coragem para enfrentar o racismo e ser forçado a ceder espaços de visibilidade e de poder para aqueles e aquelas que continuam marginalizados e excluídos da sociedade por causa da sua cultura ou cor de pele.

A possibilidade da vossa eleição abriu um caminho e espero que daqui para frente a representação política do país reflita o mosaico étnico e cultural que o compõe e que o nosso Parlamento deixe de ser tão monocromático, incluindo as populações asiáticas, ciganas, negras e tantas outras que vivem e constroem o país.

A história não começou agora, mas o futuro que agora começa convosco mobiliza-nos para a responsabilidade de fazermos com que o passado não seja a bitola do presente, nem impeça um futuro de igualdade. Temos um presente a construir e um futuro a conquistar coletivamente para que a nossa cor de pele sirva apenas e tão só para sermos vistas, reconhecidas, representadas e respeitadas enquanto pessoas cuja humanidade jamais será diminuída, ofendida e violentada por causa da cor de pele.

Espero que no dia 6 a vossa eleição comece a por fim a um hemiciclo tão monocromático, nada representativo da diversidade étnico-racial do país e que a agenda da igualdade racial não tenha apenas quem a defenda, mas também quem a represente legitimamente.

Boa sorte a todas e, como dizia Cabral, “No Pincha!”

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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