Livre elege Joacine Katar Moreira, uma activista negra

Doutorada em Estudos Africanos, Joacine Katar Moreira deixou a Guiné-Bissau e veio viver para Portugal para um colégio interno quando tinha oito anos. É cabeça-de-lista do Livre por Lisboa e foi eleita deputada este domingo.

Foto
Joacine Katar Moreira Nuno Ferreira Santos

Quando era pequena, Joacine Katar Moreira era conhecida como “la chica ente” porque, diz a própria, era tudo o que acabava em “ente”: impertinente, insolente, inconsequente.

A cabeça-de-lista do Livre por Lisboa nasceu na Guiné-Bissau há 37 anos e veio para Portugal com oito. Na Guiné foi educada pela avó porque os pais eram muito jovens. Foi a avó quem a enviou para um colégio interno em Mafra, afastando-a da instabilidade política que se vivia na Guiné.

O colégio que frequentou era das espanholas Irmãs Dominicanas da Anunciata e Joacine não se identificava com as restantes meninas, muitas delas retiradas às famílias em contextos de dificuldades económicas ou maus-tratos, o que não era o seu caso, explicou em entrevista ao Diário de Notícias. Joacine conta que gostava muito de ir à escola, mas, quando chegou a Portugal, foi colocada de novo no segundo ano porque era o que se fazia habitualmente às crianças de origem africana. Esta contrariedade motivou-a a esforçar-se nos estudos, o que não a impedia de passar “o tempo todo a questionar tudo”.

Acabou por entrar na universidade. Para pagar a licenciatura trabalhou em supermercados e em hotéis. Licenciou-se em História Moderna e Contemporânea, tirou um mestrado em Estudos do Desenvolvimento e doutorou-se em Estudos Africanos no ISCTE, onde é investigadora do Centro de Estudos Internacionais. 

A primeira vez que concorreu pelo Livre foi nas legislativas de 2015. Ocupava o 22º lugar na lista de Lisboa, o que acabou por lhe garantir uma certa “invisibilidade”. Em 2019, tornou-se na primeira mulher negra a encabeçar a lista de um partido a eleições legislativas. Foi convidada para entrevistas e programas de televisão e foi estrela nas acções de rua. A gaguez que a acompanha desde pequena não a inibiu. No colégio, essa condição também nunca a impediu de apresentar as festas de Natal ou de ler em voz alta sempre que era necessário.

Gaguez não é mental

Foi a partir do nascimento da filha que Joacine percebeu que não podia tentar esconder ou disfarçar a situação. “Eu gaguejo quando falo, não gaguejo quando penso. O que é um risco enorme na Assembleia são os indivíduos que estão lá e que gaguejam quando pensam”, disse recentemente no programa Gente Que Não Sabe Estar, da TVI, apresentado por Ricardo Araújo Pereira.

Joacine Katar Moreira fundou e é presidente do INMUNE - Instituto da Mulher Negra em Portugal, que nasceu em 2018. Descreve-o como uma “entidade anti-racista” e “feminista interseccional” que quer intervir na sociedade e produzir conhecimento sobre as experiências das mulheres negras. A criação de quotas étnico-raciais é uma das medidas do Livre, assim como a recolha de dados étnico-raciais sobre a população nos censos e a alteração da lei da nacionalidade, de forma que todos os cidadãos que nasçam em Portugal sejam automaticamente portugueses.

A ideia de regressar à Guiné passou-lhe pela cabeça, mas por pouco tempo, mas Joacine sente que Portugal é que é a sua terra e disse-o em entrevista ao jornal i. A primeira viagem que fez foi precisamente à terra natal para visitar a avó, com dinheiro que poupou quando ainda estava no último ano da licenciatura. Agora o próximo destino: a caminho do Palácio de São Bento. 

Baseado num texto originalmente publicado a 4 de Outubro

Sugerir correcção
Ler 44 comentários