O indescritível Jacques Chirac

Nesta hora de homenagens, saudarei em primeiro lugar as qualidades humanas desse homem que teve a visão de um mundo moderno, que passa inexoravelmente por um diálogo de culturas no qual o Ocidente não tem o monopólio da excelência.

É insuficiente afirmar que Jacques Chirac foi um homem político da direita; a sua ideologia foi ambígua, algumas das suas convicções mais fortes e simbólicas também agradaram à esquerda e a definição do chiraquismo é até hoje impossível. Jacques Chirac foi acima de tudo uma vida, uma vida que tinha uma cara e uma coroa da mesma moeda. No lado da cara, havia o animal político e, no lado da coroa, o intelectual aberto ao mundo. De facto, além da sua aparência e do seu carisma dignos de uma estrela de cinema, além de ser visto como um ícone de moda e “cool" pelos jovens da minha geração, e apesar do facto de que deixava as pessoas pensar que ele era inculto, Chirac foi na verdade um erudito, um intelectual discreto. Mas sempre soube misturar reflexão e batalha política, o que o tornou indescritível.

Essa mistura de géneros criou inevitavelmente ambiguidades e paradoxos. Porque, num lado, tínhamos esse Chirac político que sabia trair, dar golpes e que poderia fazer discursos racistas, por exemplo, em 19 de Junho de 1991, durante uma reunião com militantes do RPR, o partido político que ele fundou em 1976, onde se distinguiu por uma declaração polémica, e famosa hoje, na qual definia os emigrantes que viviam em França como “barulho e cheiro". Na altura, ele era presidente desse partido gaullista e presidente da Câmara Municipal de Paris, o Front National (actualmente Rassemblement National), o partido político francês de extrema-direita, estava a ganhar terreno e a imigração estava no centro dos debates. Portanto, era uma posição que tinha um fim puramente eleitoralista. E foi ainda o mesmo Chirac que disse, em 1988, uma frase completamente misógina e vulgar contra Margaret Thatcher.

Mas no outro lado, por trás dos seus grandes óculos e do jeito rock’n'roll com o qual segurava o seu cigarro – entre o polegar e o indicador –​, também se escondia o erudito, o intelectual sensível e aberto ao mundo. Chirac era capaz de falar sobre sumo, o desporto japonês, durante horas – e o seu amor pelo Japão era bem conhecido –, e tinha uma paixão por poesia e pelas culturas africana e asiática. E se é apreciado pelos jovens da minha geração – e cada vez mais pelos mais velhos – é sobretudo por sua autenticidade e espontaneidade.

Aliás, no início dos anos 2000, em Paris, quando eu era estudante, tinha numa parede do meu quarto um póster dele, uma imagem verídica, onde o víamos, como um contrabandista, pular o torniquete no metro de Paris. Chirac encarnava uma desenvoltura que fascinava; gostava da vida, da boa cerveja, de comer uma boa cabeça de bezerro, dizer palavrões masculinos e seduzir mulheres bonitas. E ele mantinha as suas dores íntimas secretas. Foi modesto com a longa e difícil doença da filha amada Laurence e foi com dignidade que sofreu pela sua morte, em 2016. Foi isso tudo que justificou a grande expressão de simpatia que se seguiu ao anúncio da sua morte, as longas filas de espera para escrever uma palavrinha nos registos de condolências, a ponto de perdoar-se tudo, inclusive o seu fraco desempenho durante 12 anos de presidência, e concentrar-se apenas na sua empatia.

Certamente havia nesse homem uma inegável sensibilidade e humanidade. Através dos gestos mais fortes que fez, ele é reconhecido pelo seu profundo e sincero respeito por outras culturas, um olhar curioso e aberto à diversidade do mundo e à universalidade da sua herança cultural. Era disso que eu gostava nele, eu que faço parte desta França moderna e diversificada. Ele não era um santo nem um homem perfeito. O Chirac que assumiu o legado da Françafrique não me interessava, nem o Chirac que foi condenado a dois anos de prisão em 2011, com pena suspensa, por “apropriação indevida de fundos públicos” nos anos 90, quando foi presidente da Câmara Municipal de Paris. Interessava-me o Chirac que queria ser um editor de livros antigos e o entusiasta da antropologia, de artes primitivas e que tinha um fascínio pelas culturas não ocidentais. "Certamente há em algum lugar da África uma árvore que vale muito mais do que a Mona Lisa", disse um dia ao seu biógrafo Jean-Luc Barré. É o jovem Chirac que traduziu Pushkin para o francês, o Presidente Chirac que levou Alexandre Dumas para o Panteão em 2002 e o humanista que odiava Cristóvão Colombo, que ele tratava de assassino, que me interessam.

Esses dois génios da literatura, Pushkin e Dumas, eram afro-descendentes e Chirac sabia disso. Ele sabia reconhecer as sensibilidades magoadas. Defendeu tópicos importantes sobre as memórias e tomou medidas que tiveram um forte consenso na nação francesa. Reconheceu a responsabilidade da França na deportação de judeus, fez reconhecer a escravatura como um crime contra a humanidade e tomou a decisão de comemorar a sua abolição, alertou a opinião mundial contra os perigos do aquecimento global, introduziu na Constituição francesa o princípio da precaução para o meio ambiente, introduziu um imposto global sobre passagens aéreas para os pobres do planeta, recusou a guerra contra o Iraque. E, menos de um ano após a sua primeira eleição, em 1995, anunciou o fim do serviço militar obrigatório. Por paixão por artes e civilizações não-ocidentais, quis e defendeu o Museu Quai Branly, para proteger culturas e povos ameaçados pela globalização. Sendo essa a principal realização cultural da sua presidência, o museu foi renomeado Quai Branly – Jacques Chirac no dia do seu décimo aniversário, em Junho de 2016.

Jacques Chirac começou a sua vida política como militante da esquerda, quando era estudante. Seguiu os trilhos da direita o resto da sua vida – o que me parece ser um oportunismo político –, votou pela abolição da pena de morte, recusou qualquer aliança com o Front National, denunciou a intolerância e o racismo desse partido da extrema-direita. Mas se nunca se saberá quais foram as suas verdadeiras convicções políticas, o que é certo é que as suas acções não foram sempre da direita. E as homenagens fulgurantes que lhe foram prestadas provam isso.

Jacques Chirac morreu no dia 26 de Setembro, aos 86 anos. Foi Presidente da República Francesa durante 12 anos, de 1995 a 2007, duas vezes primeiro-ministro, três vezes presidente da Câmara Municipal de Paris, líder de partido político, deputado e ministro várias vezes. E, nesta hora de homenagens, em primeiro lugar, saudarei as qualidades humanas desse homem que teve a visão de um mundo moderno, que passa inexoravelmente por um diálogo de culturas no qual o Ocidente não tem o monopólio da excelência.

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