Sobre a noite passada: já não é líder em Portugal, mas ainda há vida em The Walking Dead

Depois de uma nona temporada problemática, a série-fenómeno ainda é um fenómeno? The Walking Dead regressou com o ar perfumado pela civilização e com uma ameaça no céu.

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Norman Reedus e Melissa McBride em "The Walking Dead" AMC/Fox

Cento e trinta e dois episódios. Está aí alguém, The Walking Dead? Um dos fenómenos da cultura pop da última década regressou para a sua décima temporada e o episódio 132, o primeiro, sai literalmente da órbita. O universo The Walking Dead ainda não parou de se expandir e o simples fim não parece ser uma opção. Mas talvez seja precisa uma refundação e é daí que vêm The Lines We Cross, ou “Os Riscos que Pisamos”, um episódio com satélites, blazers e mães do boxe. Tudo isto no dia em que foi confirmada para Portugal a estreia de mais uma série Walking Dead, desta feita uma sequela, e em que se promete que haverá uma 11.ª temporada da série-mãe.

Este texto contém spoilers

Nos idos de 2017 e 2018, não havia dúvidas: The Walking Dead e a sua metáfora putrefacta para a velha ideia sartriana de que “o inferno são os outros” era a série mais vista em Portugal, os seus protagonistas vinham a Lisboa conhecer os fãs e a série de TV dos zombies era como uma estrela rock em digressão mundial. No último ano, o cenário mudou. O seu elenco perdeu peças centrais, a história desencantou muitos fãs e críticos e até nas tabelas foi ultrapassado por ocupantes bem mais habituais das listas dos mais vistos: em Portugal, os novos campeões são procedurals médico-noveleiros como Anatomia de Grey ou The Good Doctor ou ímanes de nostalgia como MacGyver.

Do alto do seu nono lugar nas audiências gerais portuguesas (dados de Janeiro divulgados pela UM/Mediabrands), e das suas audiências mais baixas de sempre nos EUA, The Walking Dead continuou ainda assim o seu caminho, mesmo deixando milhões de espectadores para trás. “Às vezes acho que só sobrevivemos a uma batalha até à batalha seguinte”, suspira Daryl (Norman Reedus) neste primeiro episódio da décima temporada, que o canal Fox estreou na madrugada de segunda-feira e repetiu no mesmo dia às 22h30. A meio da nona temporada, a série lá ficou sem o seu protagonista-mor, Rick Grimes, mas avisou logo que o actor Andrew Lincoln irá continuar a ser Rick — mas em três filmes, a estrear no cinema. Passados uns meses, no Verão passado, o autor dos comics que estão na sua origem, Robert Kirkman, pôs fim à longa saga BD sem aviso prévio.

E, entretanto, o canal AMC anunciou que haverá um novo spin off The Walking Dead, e já detalhou que este se vai estrear em Portugal em 2020 no dito AMC (a Fox tem os direitos de distribuição internacional da série original para Portugal). O spin-off prequela Fear the Walking Dead continua o seu caminho paralelo, com cinco temporadas já feitas, e passará a ter a companhia de uma espécie de sequela – passar-se-á dez anos depois do apocalipse zombie e terá duas jovens protagonistas, representantes da primeira geração, a crescer num mundo povoado por mortos-vivos.

Posto isto, continua no ar uma série que arrebatou o mundo a meio do seu percurso e que continua a fazer o seu caminho. Dez temporadas depois, a vida continua. A nova responsável pela série, a argumentista e agora showrunner Angela Kang, não resistiu ao clima de desinformação da vida real e embebeu-a de paranóia e propaganda.

Este regresso de The Walking Dead tem o costume: zombies, violência, luta, pares amorosos. Mas o seu ponto de partida é o mais inesperado de todas as temporadas: o espaço. Um satélite soviético é o teaser para pôr novamente a bola a rolar num mundo em que enquanto alguém amanha peixe outro alguém usa um blazer. Na última temporada, um salto temporal baralhou as cartas perante a ameaça do grupo dos Murmuradores, liderados por Alpha (Samantha Morton). A série parece acenar com um novo trunfo para libertar o aroma da mudança – o nível de aproximação ao grau de civilização pré-catástrofe é cada vez maior e parece pavimentar a estrada até à tal sequela em que há liceus, jogos de futebol e outras coisas a funcionar. Em simultâneo, também o estilo visual toma mais liberdades, permitindo-se momentos com um registo mais sitcom ou cenas de acção mais tradicionais com câmaras lentas, salpicos de estilo e divisão em capítulos chamados “Dia de Treino”, “Cinzas” ou “Novo México”.

Há pesca, há salinas, crianças mais crescidas e as dúvidas do costume. “Nós somos os bons?”, questiona-se um dos personagens neste episódio n.º132. “Somos os vilões da história de outras pessoas”, suspeita. No espectador mais céptico pode ecoar a sensação de que a série, no fundo, espera poder resistir pelo menos como um título de nicho  o habitat natural das histórias de zombies. Nos críticos, outra sensação desponta: “Parece que passámos aproximadamente 137 anos a ver estes sobreviventes fazerem poucos progressos rumo à construção de uma sociedade habitável que não seja constantemente ameaçada por assassinos, e pior, por pessoas doentes e muito sádicas. Porém eles, e nós, continuamos a marchar”, escreve Richard Rys no site Vulture.

Angela Kang quis mudar as coisas. O peso dos anos e o potencial de saturação, especialmente quando como ela se trabalhou desde a primeira temporada na série (chegou ao sétimo episódio), não lhe passarão despercebidos. Foi ela que decidiu o salto temporal operado a meio da nona temporada, por exemplo. “Já fizemos uma série de guerras na série”, dizia num podcast há um par semanas sobre o que quis mudar na nova temporada. Algo diferente, mas na continuidade obrigatória que é o apocalipse.

“Quando falámos dos temas da temporada, falámos de querer uma sensação tipo Guerra Fria – a ideia de que os Murmuradores estão sempre a vigiá-los. O satélite pareceu uma metáfora adequada”, disse Angela Kang à revista Hollywood Reporter. Paradoxalmente, neste final de 2019 há também muito menos gente de olhos postos em The Walking Dead.

Erik Kain, numa crítica quase solitária nas primeiras horas pós-episódio publicada na Forbes (tempos houve em que havia uma corrida em torno de quem conseguia publicar as primeiras críticas, reacções ou recapitulações da série), resume que este é um episódio “sólido” e que com a nova showrunner a série “encontrou novamente o seu equilíbrio”. A Vanity Fair acredita que esta temporada “pode ser a melhor em anos” graças à personagem Carol (Melissa McBride). Talvez sob menor pressão, e enquanto não desponta nova mania televisiva no pós-Guerra dos Tronos e numa pausa de Stranger Things, The Walking Dead se reencontre – pelo menos com os seus fãs de sempre.

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