Contra a indiferença, o optimismo da vontade

São cada vez mais numerosos os motivos que inspiram o pessimismo da razão, levando-nos mesmo a pensar que vivemos num mundo da pós-razão

Uma gralha numa entrevista que dei ao Expresso fez-me regressar a uma das minhas frases e princípios de vida favoritas. O seu autor é o intelectual e antigo dirigente comunista italiano António Gramsci (que, ironicamente, é hoje citado por certas personalidades de extrema-direita que disputam uma aura de sofisticação fora da sua área ideológica, como é o caso de Marion Maréchal, neta de Jean-Marie Le Pen). “Pessimismo da razão, optimismo da vontade” é a frase tal como Gramsci a enunciou – e o acidente da gralha, invertendo-lhe o sentido, permitiu-me repensar porque é que a escolhi como uma referência essencial mas, também, porque é que ela me parece mais actual e pertinente do que nunca.

De facto, vivemos num mundo onde são cada vez mais numerosos os motivos que inspiram o pessimismo da razão, levando-nos mesmo a pensar que vivemos num mundo da pós-razão. Não está em causa apenas a actualidade noticiosa e as personagens que a povoam – Trump, Johnson, Putin, Bolsonaro e tantos mais…, num crescendo de intervenções absurdas – mas os próprios mecanismos de funcionamento desse mundo, onde o império das redes sociais se impôs a quase todas as outras formas de comunicação e relacionamento humanas, relativizando-as ou neutralizando-as cada vez mais. Aliás, a relação entre o mundo actual, os seus protagonistas e a lógica de funcionamento das redes sociais tem-se vindo a estreitar progressivamente (note-se, por exemplo, que Trump inaugurou o exercício do poder através das suas mensagens compulsivas no Twitter, passando a ser logo imitado por outras personagens do universo político).

O problema maior é que essa relação abrange os cidadãos comuns no seu comportamento quotidiano – nomeadamente através da dependência viral dos telemóveis e o espectáculo de “ficção científica” que oferecem nas ruas das cidades – e isso explica o conformismo, a apatia, a indiferença, quando não mesmo a aderência, que eles manifestam perante este mundo “trumpizado” em que vivemos. Com efeito, não é possível compreender um fenómeno como Trump sem constatar o esvaziamento do espírito crítico e cívico ou a ausência de convicções e valores que se instalaram nas sociedades contemporâneas. É assim que chegamos a um amplo panorama ilustrativo do “pessimismo da razão”.

Curiosamente, a referida Marion Maréchal cita um texto de Gramsci, “Odeio os indiferentes”, para explicar a sua vocação de sacerdotisa de um novo extremismo de direita. De facto, a indiferença tornou-se um dos traços comuns do universo político, da esquerda à direita institucionalizadas (abrangendo já nessa institucionalização os respectivos extremos mais ou menos populistas). Ora, é urgente romper com a indiferença para encontrar alternativas ao bloqueio que se estabeleceu no mundo de hoje – e de que a crise climática é uma das expressões mais alarmantes – sem que isso signifique adoptar cruzadas de um sectarismo iluminado como aquela que anima a neta de Le Pen.

Na sua mensagem de ontem aos novos cardeais – entre os quais se incluía Tolentino Mendonça –, o Papa Francisco referiu-se oportunamente à necessidade de ultrapassar aquilo que é também um dos maiores pecados da Igreja: o “hábito da indiferença”. É na luta contra esse “hábito da indiferença” e no combate pelas convicções que dão sentido à nossa vida que conseguiremos opor ao pessimismo da razão o optimismo da vontade.

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