Democracia, Persuasão e Verdade

A persuasão promove a divulgação da verdade? A persuasão perverte a deliberação pública? Ou: como é que os políticos podem ser persuasivos sem perverter as mais elementares verdades?

Os mais eminentes filósofos liberal-democratas (Mill, Rorty, Rawls etc.) e outros de inspiração esquerdista (Habermas, Honneth etc.) chamam-lhe deliberação pública. Os especialistas em psicologia política, obreiros incansáveis das muito apetecidas maiorias eleitorais, dão-lhe outro nome: persuasão. A relação da persuasão com a deliberação é habitualmente paradoxal. Porquê? A persuasão tende a perverter a verdade, o pilar essencial de qualquer processo de deliberação pública digno do nome. Estou a enveredar pelo purismo ideológico? Talvez. Não raramente os argumentos mais persuasivos são também os menos verdadeiros ("Brexit”, Trump, Bolsonaro etc.).

A forma mais ignóbil da persuasão política é, claro, a demagogia. Ilustremos este problema com um exemplo simples. Como é sabido, todos os partidos que ganham eleições afirmam a sua legitimidade distinguindo-se do governo que depuseram. Não será descabido afirmar que a contra-distinção é o mais comum acto discursivo nas democracias liberais. Os partidos políticos rivais distinguem-se até à exaustão. Assim foi entre nós. O fim da austeridade, dizem os socialistas, começou com a gloriosa “geringonça”. Ora, como é sabido pela maioria dos portugueses razoavelmente sensatos, a austeridade não acabou em 2015. Foi apenas inteligentemente reconfigurada (cativações, subida de impostos indirectos). A dita reconfiguração que consistiu em pouco mais do que a tímida devolução de rendimentos dos funcionários públicos e de outras benesses menores foram pomposamente e paradoxalmente celebradas pela “esquerda” como uma espécie de nova era, não obstante os ferozes protestos de uma multidão infindável de esquecidos. Instituiu-se uma fronteira temporal tão fictícia quão intransponível entre o que foi e o que é. O que nenhum esquerdista jamais reconheceria é que o fim (reconfiguração) da austeridade só foi possível porque as contas públicas de um país profundamente dependente do crédito externo já haviam sido equilibradas, um facto simples e inquestionável que qualquer economista integro corroboraria sem qualquer dificuldade. Se considerarmos este argumento fundamentalmente verdadeiro, deparamo-nos de imediato com um problema deveras espinhoso: o que acontece à sacrossanta deliberação pública, supostamente límpida e verdadeira, quando a persuasão político-partidária entra em jogo? A persuasão promove a divulgação da verdade? A persuasão perverte a deliberação pública? Ou: como é que os políticos podem ser persuasivos sem perverter as mais elementares verdades?

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