Quantos afinadores de piano existem em Lisboa?

Temos uma responsabilidade enorme de preservar o património ambiental e biológico que existe no planeta. Está nas nossas mãos definir as políticas ambientais, societais, económicas e ecológicas.

O físico Enrico Fermi, o principal arquitecto da era nuclear, foi o pai do primeiro reactor nuclear artificial, criado em 1942 num campo de squash da Universidade de Chicago. Embora os conhecimentos de tecnologia nuclear, à data, fossem incipientes, e existisse a possibilidade teórica de a reacção em cadeia poder ficar descontrolada e o reactor se converter numa imprevista bomba atómica, os responsáveis militares e civis depositaram suficiente confiança nos cálculos aproximados de Fermi para autorizarem que a experiência decorresse numa área muito populada, dentro da própria universidade.

A experiência veio a revelar-se um sucesso, e essa primeira reacção em cadeia, controlada, foi a precursora não só dos actuais reactores nucleares como também de toda a tecnologia militar baseada nas reacções nucleares em cadeia. Mais de sete décadas depois, o cálculo e dimensionamento de reactores nucleares é executado rotineiramente, por físicos nucleares que usam programas altamente especializados para calcular o comportamento dos reactores num vasto conjunto de condições. Em 1942, porém, estes programas não existiam e muitas aproximações tiveram de ser feitas, por Fermi e pela sua equipa, para calcular o dimensionamento correcto para os diversos parâmetros do reactor.

Embora Fermi tenha ficado conhecido principalmente como físico nuclear, e lhe tenha sido atribuído um prémio Nobel pelo seu trabalho nessa área, o seu nome está também associado a muitas outras contribuições. Uma dessas contribuições teve que ver, justamente, com a sua insistência na importância de saber apresentar estimativas para grandezas sobre as quais pouco se sabe, conjugando pressupostos razoáveis sobre diversas componentes da resposta. Fermi ficou conhecido por fazer perguntas (que ficaram desde então conhecidas como “perguntas de Fermi”) para as quais não era fácil obter dados para uma resposta exacta, mas cuja resposta podia ser estimada, pelo menos em termos de ordem de grandeza.

O título deste artigo (embora o original fosse com a cidade de Chicago, e não a de Lisboa) é um exemplo de uma pergunta de Fermi. Saberá o leitor estimar quantos afinadores de piano existem em Lisboa? À primeira vista, é difícil responder ou mesmo estimar esse número. Serão cinco? Serão cem? Serão mil?

O método de Fermi consistia em partir o problema em pedaços, usando estimativas, possivelmente grosseiras, que pudessem ser combinadas para estimar a ordem de grandeza da resposta. Em Lisboa, área metropolitana, vivem cerca de três milhões de pessoas. A uma média de duas pessoas por habitação, existem 1,5 milhões de habitações. Digamos que uma em cada 30 habitações tem um piano que é afinado regulamente, uma vez por ano (esta é a estimativa mais difícil). Nesse caso, existirão (cerca de) 50.000 pianos afinados, em cada ano, na Grande Lisboa. Um afinador de pianos que afine quatro pianos por dia e trabalhe 48 semanas por ano conseguirá afinar cerca de mil pianos por ano. Serão então necessários cerca de 50 afinadores de piano para afinar regularmente os pianos da Grande Lisboa. Este valor, obtido com esta metodologia, reconhecidamente aproximada e falível, chama-se, na gíria, uma estimativa de Fermi. A metodologia, porém, é geral, e pode ser aplicada a muitos problemas, uns mais fáceis, outros mais difíceis. Quanto é que cada cidadão português deve, como consequência da dívida do Estado português? Quantas pessoas morrem, em cada hora, em Portugal? Quantos litros de cerveja são consumidos em Lisboa, por ano? Quantos ginecologistas são necessários, em Portugal? Quantos professores devem as universidades portuguesas contratar, em cada ano?

Este tipo de literacia numérica é mais importante do que possa parecer à primeira vista, porque permite tomar uma posição crítica face a muitas notícias, falsas, erradas ou enganadoras, que muitas vezes são usadas para manipular a opinião pública. Na década de 40 do século passado não havia Internet, que hoje permite responder a muitas questões deste tipo sem necessidade de fazer contas ou estimativas complexas. Mas, muitas vezes, a Internet não tem a resposta pretendida e pode ser eficazmente usada para obter os dados que são necessários para as estimativas intermédias, fazendo com que o método de Fermi seja assim tão útil hoje como era na primeira metade do século XX.

Curiosamente, o nome de Enrico Fermi ficou também associado a uma outra pergunta, feita por ele na sequência de uma discussão sobre a existência de vida extraterrestre. Face ao número de estrelas na Via Láctea (a nossa galáxia) e à probabilidade de cada estrela ter um planeta com vida inteligente, Fermi calculou uma estimativa rápida e concluiu que poderiam existir muitas civilizações inteligentes na galáxia, terminando com uma pergunta que ficou famosa, referindo-se aos extraterrestres: onde estão eles?

Este problema, porém, é tão complexo que mesmo o método de Fermi não consegue obter uma estimativa minimamente precisa. O método para estimar o número de civilizações inteligentes na galáxia, neste caso, resulta da multiplicação de diversos factores numa fórmula que ficou conhecida como a fórmula de Drake. Numa versão algo simplificada, é necessário multiplicar cinco factores: o número de estrelas que se formam por ano (cerca de três); a fracção de estrelas que têm planetas habitáveis; a fracção de planetas habitáveis que desenvolvem vida; a fracção de planetas com vida onde aparece inteligência e uma civilização tecnológica; e o número de anos que uma civilização dura. Os três últimos factores são tão difíceis de estimar que o método de Fermi não dá resultados fiáveis. Na prática, com o acumular da evidência científica que uma significativa fracção de estrelas poderá ter planetas habitáveis, o resultado final da estimativa de Fermi depende criticamente de quão provável é aparecer primeiro vida e depois vida inteligente num planeta habitável (pode ser muito comum, ou muito raro) e de quantos anos uma civilização tecnológica tipicamente perdura (pode perdurar apenas algumas dezenas de anos, ou pode perdurar milhões de anos). Para estes dois factores (a probabilidade de aparecer vida inteligente num planeta habitável e a duração de uma civilização tecnológica) não existe nenhuma estimativa razoável, porque não conhecemos mais nenhum exemplo além do nosso próprio planeta.

Se, de facto, a nossa civilização for a única da galáxia, então resulta necessariamente da combinação dos efeitos de duas explicações possíveis: ou o aparecimento de inteligência é um fenómeno muito raro, e pode, no limite, só ter acontecido na Terra; ou as civilizações inteligentes aparecem com frequência mas extinguem-se rapidamente, e nunca se encontram umas às outras. Em qualquer dos casos (quer existam outras espécies inteligentes quer se venha a descobrir que a inteligência é muito rara na galáxia) temos uma responsabilidade enorme de preservar o património ambiental e biológico que existe neste planeta que, pelo menos para nós, é único. Está nas nossas mãos definir as políticas ambientais, societais, económicas e ecológicas que permitam preservar, para o futuro, este património único. Isso deverá ser feito de uma forma ambiciosa, mas realista, definindo metas exequíveis e passos concretos para as alcançar.

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