Férias

Escapámos aos empreendimentos turísticos e apreciámos os desenvolvimentos agrícolas do litoral, laranjais a perder de vista, vinhedos e hortas.

A ecovia do Algarve salvou as férias. Estávamos instalados nas salinas de Tavira, onde a paisagem natural e os pássaros, sobretudo os flamingos, faziam as delícias da família. Mas a ideia era fazer férias de praia, coisa que se revelou difícil logo no primeiro dia, com forte vento de oeste e água fria. Alugámos bicicletas e percorremos a ciclovia entre a Fuseta e Cacela Velha. Escapámos aos empreendimentos turísticos e apreciámos os desenvolvimentos agrícolas do litoral, laranjais a perder de vista, vinhedos e hortas. A reserva natural da ria Formosa tem desempenhado um papel fundamental na preservação daquela secção da costa.

Regressámos à praia diversas vezes como área de corrida e marcha. Estava bom para os praticantes de kitesurf. Mas a quantidade de plástico desagregado em pequenos pedaços e misturado com as algas deixou-nos perplexos. O meu filho João, 17 anos, que vinha de escalar as montanhas à volta de Chamonix com os amigos, aproveitou para diminuir o litoral em favor da pureza dos Alpes.

A ideia da contaminação dos oceanos com os microplásticos, que penetram os organismos animais e entram na nossa cadeia alimentar, tornou-se palpável com esta experiência. A notícia da descoberta da bactéria e-coli nas águas à volta de Faro deixou-nos ainda mais inquietos sobre férias de praia.

Logo a seguir li um relatório sobre a presença de microplásticos na neve do Ártico. Pesquisas nos Pirenéus e Alpes franceses têm mostrado resultados idênticos, apontando para a contaminação do ar. A destruição do planeta torna-se irreversível e a irresponsabilidade da maior parte da classe política de todos os países, encabeçada pelos negacionistas Trump e Bolsonaro, revoltante. Já não há qualquer canto do planeta livre da poluição.

Os passeios de bicicleta ou a pé foram complementados pela ótima experiência gastronómica na região (sem reflexão ecológica). A Fábrica continua a ser um pilar da cozinha algarvia ao fim de 45 anos de existência. Já não comia arroz de lingueirão há vários anos, estava no tempero e consistência ideais. Em Tavira, o Noel surpreendeu pela qualidade da cozinha tradicional portuguesa e a imbatível relação qualidade-preço. Lembro o excelente atum curado, boas ameijoas e um prato de carapaus fritos com arroz de tomate.

Noutro nível de sofisticação situou-se o Artefacto, também em Tavira, que se distingue pela qualidade dos produtos de base. A entrada de carpaccio de atum com eruca não podia ser mais saborosa, enquanto o robalo estava excelente, cozinhado no meio de rodelas de laranja, acompanhado por um gratinado de alho francês e couve-flor, mais batata-doce no forno com fio de manteiga de alho. Tratou-se do local com melhor confeção de legumes.

La Petite France é outro belo restaurante em Tavira com grande qualidade de produtos e um cozinheiro de mão cheia, onde comi uma generosa porção de atum sobre arroz negro. O ambiente é excelente, marcado por boa música ao vivo. Finalmente, o restaurante Noélia, em Cabanas, completou esta experiência ao melhor nível, pois foi ali que comi o melhor atum da minha vida, braseado, quase cru, marinado pelo molho de soja, acompanhado por batata-doce e manga.

A literatura não podia deixar de acompanhar as férias. Tinha ficado fascinado com o Red Sorghum, tradução inglesa do romance de Mo Yan que o catapultara para a fama internacional e o prémio Nobel. A riqueza de linguagem e a ferocidade da narrativa, situada numa pequena cidade do norte da China durante a ocupação nipónica, colocavam noutro nível a relação entre história e literatura, tão bem desenvolvida por Amitav Gosh com a trilogia do Ibis relativa à guerra do ópio. O romance que li agora de Mo Yan em tradução inglesa, Big Breasts and Wide Hips, desapontou-me no início dado a repetição de cenário e local de ação, mas a enorme capacidade imaginativa de histórias e enredos cativou-me e fui compensado pelo extenso fresco, dos anos de 1900 a 1980, sobre diferentes momentos políticos vistos através da vida de uma família camponesa.

Surpreendente foi o outro romance que levei comigo, The Stolen Bicycle do autor da Formosa Wu Ming-Yi. O narrador procura o pai e a bicicleta desaparecidos logo a seguir à expulsão dos japoneses da ilha. O fio condutor das sucessivas histórias está na bicicleta original, pois o narrador, quando criança, passava os dedos por baixo do tubo superior e decorara o número de série. Trata-se de um romance fascinante sobre a história das bicicletas e o seu desenvolvimento para a agricultura, a cidade e a guerra. Embora a linguagem e a pequena história desempenhem um papel fundamental, trata-se de um romance conceitual, permeado por comentários técnicos sobre bicicletas, colecionismo e restauro, num vaivém entre situações de vida atual e situações de guerra no período da ocupação nipónica.

O contraste com o terceiro romance que levei comigo não podia ser maior, Summer de Karl Ove Knausgaard, uma tradução inglesa do norueguês com ilustrações de Anselm Kiefer escolhidas em diálogo com o autor. Trata-se do último volume do quarteto sobre as estações, com pequenos textos e extratos de diários dirigidos à filha mais nova. Os textos descrevem situações precisas do quotidiano vividas pelo autor. Estão bem escritos mas sem a riqueza de linguagem e recursos estilísticos dos autores chineses. A aparente secura dá lugar a reflexão sobre literatura ou pintura. O texto datado de 5 de Junho de 2016, onde Knausgaard descreve a visita ao estúdio de Kiefer, deu-me outra visão do pintor, mostrando como diferentes estilos podem conter desafios pertinentes.

De regresso a Cambridge resolvi passar um dia em Londres. Vi a exposição do artista dinamarquês-islandês Olafur Eliasson na Tate Modern: as fotografias dos glaciares da Islândia em vias de extinção são um murro no estômago. Mas o artista tem muito mais para dar, pois desde cedo desenvolveu modelos geométricos relacionados com a perceção do espaço, pesquisou materiais, envolveu-se na nova gastronomia e criou projetos arquitetónicos inovadores com Sebastian Behman, membro do estúdio multidisciplinar de Eliasson em Berlim. A exposição faz as delícias das crianças, com câmaras secretas, túneis geométricos, vídeos e espaços transformados por tubos e espelhos no teto.

A peça de teatro Tree, criada por Idis Elba e Kwame Kwei-Armah, e encenada por este no Young Vic, completou o dia de readaptação. Uma peça forte sobre o conflito racial na África do Sul, centrada no descontentamento face à exclusão da população africana da propriedade da terra que persiste após o fim do apartheid. Baseada numa linguagem forte de ódio e memória do passado repressivo, embora com um final conciliador, a peça distingue-se pelos recursos cenográficos, de iluminação e projeção. O envolvimento do público multiétnico é outra das qualidades do Young Vic, que começa e acaba com dança generalizada no palco e na plateia de onde foram retiradas as cadeiras. Nada melhor para reentrar no ciclo de trabalho.

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