Bola-de-berlim, um bolo com queda para a praia

A bola-de-berlim faz parte do ritual de praia de muitos portugueses. Desde quando? Há memória deste doce nas praias da linha de Cascais ainda na primeira metade do século XX, graças a refugiados judeus.

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O comboio com destino ao Porto estava prestes a partir. O barulho do motor a ganhar energias enchia a estação de Santa Apolónia, em Lisboa, quando Ana Ormond dá a volta à chave que abre a Berlineta. Na loja desta estação, não se usam as lambretas que dão nome à marca que vende “as originais bolas-de-berlim”, como diz o slogan, mas foi com elas que começou o negócio das bolinhas.

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O comboio com destino ao Porto estava prestes a partir. O barulho do motor a ganhar energias enchia a estação de Santa Apolónia, em Lisboa, quando Ana Ormond dá a volta à chave que abre a Berlineta. Na loja desta estação, não se usam as lambretas que dão nome à marca que vende “as originais bolas-de-berlim”, como diz o slogan, mas foi com elas que começou o negócio das bolinhas.

Ana ter-se-ia posto a rechear e vender bolas-de-berlim se o PÚBLICO não a convidasse a conversar um pouco, longe do barulho. Conta que pontos como este, de onde partem e chegam pessoas, são muito bons para o negócio. “Há pessoas que comem uma bola todos os dias, religiosamente. São os clientes habituais e que curiosamente pedem sempre o mesmo sabor.”

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A loja da Berlineta na estação de Santa Apolónia, em Lisboa Andreia Carvalho

A Berlineta surgiu em 2014, da cabeça de Alessandro Iuliano, que, quando era mais novo, ganhava uns trocos a vender bolas-de-berlim na praia. Para além das bolas tradicionais, a marca reinventa este bolo com massas como beterraba, alfarroba, erva-doce e canela. Parte do segredo está na massa: “leva farinha, seja de trigo, alfarroba, coco; água e, às vezes, corante vegetal. Nas bolas vegan, nada de vestígio animal, nada de leite, ovos, margarina”, elenca a responsável.

Ana e Alessandro não são pasteleiros, mas compensam em criatividade. Mal têm uma ideia, consultam o pasteleiro. Se for possível, a bola nasce. Na altura do Arraial Lisboa Pride, a Berlineta trouxe para as montras das lojas uma bola-de-berlim roxa (farinha de açaí) com recheio azul (creme de spirulina).

Tenta-se responder às necessidades de todos: “Ao longo do ano, os clientes foram pedindo bolas vegan e agora já as temos em sete sabores de massas e dez cremes”, relata Ana Ormond. Carvão activado, pistácio, limão, laranja — este ano, levaram também sabores vegan até às praias da Caparica e Carcavelos.

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Andreia Carvalho

Trazer a pastelaria para a praia

Não são poucas as pastelarias que, à semelhança da Berlineta, vendem este bolo junto ao mar. A marca lisboeta chega a vender mil bolas de massa frita por dia no Verão, o dobro do que no Inverno. A questão é: porque gostamos de comer este bolo frito, potencialmente gorduroso, e coberto de açúcar, em pleno areal?

Frederico Duarte, juntamente com Rita João e Pedro Ferreira (Estúdio Pedrita), escreveu o livro Fabrico Próprio, que faz parte de um projecto multidisciplinar sobre o design da pastelaria semi-industrial portuguesa. Desde 2005 que estes designers investigam este tipo de pastelaria e a bola-de-berlim foi um dos 92 bolos que incluíram naquele que é muito mais que um catálogo de bolos.

No livro, incluíram um capítulo ligado aos vendedores de bolas-de-berlim na praia. E porque são tão populares na praia? “A conclusão a que chegámos foi que este é o único bolo, de todos os que vimos no país, que é frito e que não vai ao forno. Isso quer dizer que o tempo de passar do cru a passível de ser servido é muito curto”, explica Frederico.

Enquanto escreviam o livro, os pasteleiros do Algarve explicaram-lhes que, assim, conseguem oferecer bolas frescas rapidamente e que isso ajudou à aceitação das bolinhas na praia. Frederico continua: “Conseguimos fazer esse movimento pendular entre a praia e a fritadeira. Com mais nenhum bolo conseguimos fazer isso. E isso foi importante para perceber porque é que a bola-de-berlim vingou tanto.”

Outras explicações passam pelo contraste entre o sal e o açúcar – saímos da água do mar com os lábios salgados e o doce do bolo corta esse sabor – ou, simplesmente, a vontade de comer algo calórico num dia de sol.

A história sombria da bola-de-berlim

A bola-de-berlim tornou-se num dos lanches predilectos dos portugueses em contexto de praia. Para explicar esta afinidade, temos de recuar ainda mais. ​Há, na realidade, um passado negro por detrás da chegada desta bola de massa frita a Portugal.

Com a ascensão do nazismo, um dos países que mais refugiados judeus acolheram foi Portugal. Salazar manteve o país fora da Segunda Guerra Mundial, o que permitiu a vinda de milhares refugiados de guerra, que começaram a chegar a Lisboa na sequência da perseguição.

No seu livro, Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial, a historiadora Irene Flunser Pimentel não deixa de referir as bolas-de-berlim. Conta ao PÚBLICO que entre os judeus alemães que fugiram estava a família Davidsohn e que com eles veio a receita para o bolo, que na Alemanha toma vários nomes. Apesar de em Berlim o bolo se chamar Pfannkuchen na maior parte do país é conhecido como berlinner – mais próximo do nome português, ou, mais a sul, krapfen.

Este nome, aliás, já proporcionou momentos colectivos engraçados. Em 1963, num caricato discurso do presidente americano John F. Kennedy em Berlim ocidental, este proclamava: “Ich bin ein Berliner”. Era suposto traduzir-se como “Eu sou um berlinense”, mas, na verdade, estava mesmo a dizer “Eu sou uma bola-de-berlim”, já que era isto que significava fora de capital alemã.

De regresso a terras lusas: no livro da historiadora, lê-se que no dia 6 de Outubro de 1935 chegavam a Portugal Ruth Davidsohn, a irmã e os pais, vindos de Hamburgo, do norte da Alemanha. A escolha de Portugal como destino para o exílio, explica-se pelo facto de os Davidsohn já terem família em terras lusas – os tios Lily e Hugo Losser, que trabalhava na importação de máquinas automáticas de chocolates. Mas “a existência de um acordo luso-alemão que dispensava vistos nos passaportes de cidadãos dos dois países, desde 1926”, foi determinante. Irene Pimentel chegou a esta história graças à socióloga alemã Christa Henrichs, que partilhou com a historiadora portuguesa várias entrevistas a refugiados antinazis. Parte do resultado pode ser visto no documentário Lisboa – Porto de Esperança, que a Christa ajudou a realizar.

Foi a mãe de Ruth Davidsohn que começou a fazer bolas caseiras – é aqui que, no livro de Irene Pimentel, termina a parte mais negra da história da bola-de-berlim. Por esta altura, conta-nos a historiadora, os refugiados judeus enchiam as praias de Lisboa por causa do calor. Não há fontes que liguem directamente estes dois fenómenos, mas confirma-se que houve uma troca cultural marcante: “É muito engraçado porque os refugiados aprenderam a comer sardinhas e bacalhau, e o cosmopolitismo advém da presença deles em Portugal.”

Confeccionaram-se mais e mais bolas-de-berlim. A receita alterou-se. Na adaptação portuguesa, o bolo pode ser recheado com creme de pasteleiro, amarelo por levar tantos ovos – “uma originalidade portuguesa”, assegura-nos a historiadora. A versão de origem, a berlinense, não deixa ver o recheio porque na massa era injectada uma compota de fruta, “geralmente de morango ou framboesa”, acrescenta Irene Pimentel.

Eis a história de como a bola-de-berlim passa a fazer parte do reportório culinário português, e paralelamente foi-se consolidando o hábito de comer este bolo nas praias. Enquanto aprofundavam os conhecimentos que viriam a compor o livro Fabrico Próprio, Frederico Duarte e os colegas falaram com Maria de Lourdes Modesto, um dos mais importantes nomes da culinária nacional. A “diva da gastronomia portuguesa” contou-lhes a lembrança que tinha de comer bolas-de-berlim nas praias da linha de Cascais, em Lisboa, já em 1940. Sobre quando é que este bolo passou a “ir mais à praia” sabe-se pouco, mas é fácil de ver que a bolinha frita está a cobrir cada vez mais território.

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Ana Banha

A bola para além de Lisboa (e da praia)

Com a pesquisa para o livro, Frederico Duarte apercebeu-se de que comer bolas-de-berlim era “um fenómeno ainda muito de Lisboa para sul”. Se no Porto não havia tradição de comer bolas-de-berlim, a “globalização” (ou gulodice) já se encarregou de mudar isso.

Isabel Câmara, fundadora da empresa Bolas da Praia, admite que em território algarvio “sempre houve mais bolas-de-berlim”, mas que o Porto já não fica de fora. A empresária aventurou-se no negócio da venda deste bolo em 2012, juntamente com uma sócia. O objectivo era levar as bolas-de-berlim que se encontravam na praia a toda a cidade. “Nunca vendemos na praia nem pusemos um pé na areia. A ideia foi levar esse conforto de comer uma bola a quem está nos escritórios”, explica Isabel.

A Bolas da Praia também faz chegar bolas-de-berlim às empresas de Lisboa. E é na capital que mais clientes tem — Lisboa encomenda-lhes o triplo dos bolos que o Porto. Em ambas as cidades, as bolas vêm dentro de um saquinho às riscas azuis e brancas, “que fazem lembrar as barraquinhas da praia”, descreve a fundadora da empresa.

Hoje, encontra uma bola-de-berlim seja onde for. A dificuldade, agora, já não está em decidir se vai com creme ou sem creme, mas sim com que novo sabor.

Editado por Luís J. Santos