A Human Rights Watch desilude no plano dos Direitos Humanos

O artigo de Kenneth Roth a expressar decepção com o desempenho em matéria de direitos humanos do secretário-geral António Guterres é mais uma expressão de exibicionismo e até, em certa medida, de arrogância.

A 22 de Julho de 2019, Kenneth Roth publicou um artigo no PÚBLICO intitulado “António Guterres, secretário-geral da ONU, desilude no plano dos direitos humanos”.

Este ensaio a atacar António Guterres não é uma voz a “remar contra a maré”. Pelo contrário, é bastante popular – e comprovadamente tendenciosa. As grandes ONG, sediadas em países ricos e avançados e que desfrutam de generosos apoios por parte do establishment, nem sempre pensam “fora da caixa” e são propensas, tal como os grupos de interesses que as apoiam, a politizar os direitos humanos e consequentemente a falhar com os detentores desses direitos nos países mais pequenos ou mais fracos. Embora efectivamente contribuam para expor situações de violações de direitos humanos por todo o mundo, não estão isentas de preconceitos que reflectem a estrutura dos seus órgãos directivos centrais ou o contexto cultural em que operam. Não podem arrogar-se a legitimidade exclusiva de falar em nome da sociedade civil de muitos países, e quando o fazem podem estar a falhar com os detentores dos direitos humanos, particularmente nos países em desenvolvimento, cujas prioridades são muitas vezes diferentes das delas.

São necessárias uma análise e uma avaliação sóbrias para determinar se e em que medida as prioridades e as agendas das ONG como a HRW são definidas pelos interesses gerais das estruturas de poder e das múltiplas elites estabelecidas em muitos países. O artigo de Kenneth Roth a expressar decepção com o desempenho em matéria de direitos humanos do secretário-geral António Guterres falha em identificar as causas profundas das violações dos direitos humanos. As suas advertências têm pouco ou nenhum valor preventivo e não formulam recomendações construtivas como, por exemplo, a prestação de serviços de aconselhamento e de assistência técnica a muitos países que deles precisam e que os têm vindo a pedir.

A estratégia de “apontar o dedo e dizer mal” da HRW tem sido inconclusiva, na melhor das hipóteses, porque “apontar o dedo e dizer mal” depende da autoridade do “apontador” e da imparcialidade da metodologia. Nesse aspecto, o ataque de Kenneth Roth ao secretário-geral é mais uma expressão de exibicionismo e até, em certa medida, de arrogância. As críticas da HRW à China, Rússia, Cuba, Nicarágua ou Venezuela seriam mais persuasivas se a organização abordasse com a mesma intensidade as flagrantes violações dos direitos humanos em muitos outros países. Por exemplo, o Sr. Roth não menciona a negação do direito à autodeterminação de milhões de pessoas, o retrocesso no gozo dos direitos económicos, sociais e culturais (proibido pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais), o saque de recursos naturais e a degradação do ambiente por parte de empresas transnacionais e dos seus esquemas neocoloniais, a impunidade gozada por políticos que se envolvem em guerras agressivas e por paramilitares e empresas de segurança privada ou o impacto devastador dos bloqueios dos países-fonte e das sanções económicas nos direitos humanos das populações de Gaza, Síria, Irão e Venezuela, que já causaram e continuam a causar dezenas de milhares de mortes.

A politização ou, como agora testemunhamos com preocupação, o uso dos direitos humanos como arma está a levar o mundo para um caminho perigoso. Quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) foi adoptada em 1948, Eleanor Roosevelt, Charles Malik, René Cassin e outros falaram sobre a dignidade humana e os direitos inalienáveis dos seres humanos, mas o Artigo 29 da DUDH também nos lembrava que “o indivíduo tem deveres para com a comunidade”. Efectivamente, o que é mais necessário é uma educação global em direitos humanos, incluindo o direito humano à paz, uma educação em empatia e solidariedade com os outros – compaixão, não uma competição predatória na “indústria dos direitos humanos” num registo de superioridade moral.

Ao mesmo tempo, não se deve esperar que o secretário-geral actue como uma ONG de direitos humanos. Este alto cargo não é o de um activista irresponsabilizável. Também não é o de um general que pode destruir um qualquer estado por sua vontade, nem o de um secretário que deve ser subserviente aos poderes dominantes. Este alto funcionário tem de reconhecer a realidade do equilíbrio de poder, que não pode fundamentalmente alterar, mas deve lutar com obstinação, e às vezes coragem, para puxar a comunidade internacional para mais próximo do cumprimento dos propósitos e princípios das Nações Unidas, dos quais o mais importante é a promoção da paz através da prevenção de conflitos, bons ofícios, mediação imparcial, desarmamento e sim, direitos humanos. Só quando toda a diplomacia falhar pode o “apontar o dedo e dizer mal” tornar-se uma opção. Mas é uma opção básica e um sinal de fracasso diplomático.

Na nossa experiência como Relatores Especiais do Conselho de Direitos Humanos, cumprimos os nossos mandatos não desafiando abertamente a autoridade dos Estados ou pretendendo dar-lhes lições sobre direitos humanos, mas dando uma oportunidade à diplomacia discreta. Foi assim que um de nós, em conjunto com um Perito Independente, facilitou o levantamento das sanções ao Sudão, e é também assim que hoje em dia estamos novamente a lidar com os protagonistas de outros conflitos. Conseguimos criar confiança e contribuímos para a libertação de pessoas detidas. A argumentação perseverante e discreta dá frutos.

Queremos um secretário-geral​ que, nas questões de direitos humanos, coloque os valores acima da política, e é isso que na nossa opinião Guterres está a fazer. Temos um secretário-geral que pode falar pela verdade, e que pode pelo menos ouvir as narrativas dos Estados mais pequenos e mais fracos, que não têm acesso aos meios de comunicação globais e cuja acção é distorcida por informações tendenciosas. Sem dúvida que o assassinato de Khashoggi é uma tragédia, porque, além da trágica perda de uma vida humana, também a liberdade de expressão foi atacada. Mas Kenneth Roth não menciona os milhares de migrantes que perdem a vida nas líquidas sepulturas dos oceanos porque salvá-los no mar se está a tornar numa ofensa criminal em algumas nações “esclarecidas”. As vidas têm diferentes valores dependendo da sua “explorabilidade” para fins políticos? Não achamos que o secretário-geral deva seguir por esse caminho, mesmo que isso cause descontentamento em alguns sectores.

Estaríamos verdadeiramente preocupados se o secretário-geral seguisse o caminho da indignação selectiva defendida implicitamente pelo Sr. Roth, porque perderia a liderança moral com a qual todos nós, pessoas de boa vontade, nos podemos identificar em todo o mundo. Isso seria uma grande decepção.

Congratulamo-nos com o facto de António Guterres ser um secretário-geral que não hesita em chamar as coisas pelos nomes, um secretário-geral que promove a paz e não alimenta conflitos, que luta contra sanções económicas unilaterais e que apoia o Direito ao Desenvolvimento e coloca o Secretariado das Nações Unidas ao seu serviço. Saudamos um secretário-geral que, em conjunto com a nova Alta-Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, se dedica a envolver toda a humanidade na nobre tarefa de, dia-a-dia, implementar direitos civis, culturais, económicos, políticos e sociais em maior liberdade – e em boa-fé.

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