A inocência de ser crescido à força: um episódio em Cox’s Bazar

Dos tempos de faculdade não me lembro de nenhum livro que aborde o momento de consulta exclusivamente com crianças, quando uma é responsável por outra (ou outras). O mundo não deveria precisar desses livros. Mas, pelo que vivo aqui em Cox’s Bazar, carece disso mesmo.

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Catarina Rabanada

Segundo o meu diploma, tornei-me enfermeira a 20 de Julho de 2012. Não esqueci mais, foi um dia feliz quando o recebi. Não tinha como antecipar que sete anos depois estaria em Cox's Bazar, no Bangladesh, a ser parte — ínfima, é certo — da resposta internacional à grave crise humanitária que assola o povo rohingya. A vida aconteceu e cruzei-me com as pessoas certas.

Também não imaginei situações para as quais o percurso académico (sem culpa!) não nos prepara, que não vêm nos livros e que, mesmo se viessem, não tornariam de todo óbvios a resposta ou o procedimento a adoptar. Por isso, e como se de lembrança se tratasse, precisamente sete anos mais tarde, aconteceu assim.

Passavam uns minutos das 11 horas. Já estávamos a um ritmo acelerado aqui no Hope Field Hospital for Women, com zonas de espera cheias, mais umas quantas pessoas aguardando em pé.

Entre o chão ser limpo na sequência de um procedimento anterior e chamar o próximo utente, dei conta de um rapaz à porta do consultório. Não tinha mais de sete ou oito anos e trazia ao colo outro menino que não parecia ter mais de dois. Estava calado, parado, a observar-nos na sala. O seu corpo magro, de t-shirt e calções gastos vestidos, estava torto, encurvado, a tremelicar das pernas. Notava-se que fazia esforço para manter o mais novo acomodado numa das suas ancas. Levou uns segundos a pousá-lo no chão e, quando o fez, apontou para o pé coberto de poeira do chão e algum sangue já seco. Vinham os dois descalços, o que é comum por aqui. Ainda procurei pelo adulto que os acompanhava, mas constatei que não existia nenhum. Eram só eles, com o mais velho a desenrascar a situação.

Na inocência de quem desconhece que existem idiomas diferentes e que nem todos falamos o mesmo, lá explicou o sucedido, num bengali corrido e rápido, ao mesmo tempo que gesticulava efusivamente para representar os detalhes do acidente. Escusado será dizer que não entendi uma palavra, mas não dei parte fraca e indiquei que entrasse. Levantei os dois para os sentar na maca porque sozinhos teriam de trepar. O pé tinha um corte pequeno a precisar de uma boa limpeza e um penso resistente, já que calçado não havia, mas, a nível clínico, aquele era um cenário muito simples.

O meu colega, natural do Bangladesh, acabou por me traduzir sumariamente: “Andavam a brincar na rua e o mais pequeno cortou-se com bambu.” Há bambu em todo o lado, aqui. É muito utilizado, conjuntamente com outros materiais, como fundação de várias “casas” (ou barracas?) do campo.

Preparei o material, luvas colocadas e vamos a isto. Ao mesmo tempo que lavava o pé e avaliava o corte, felizmente muito superficial, apreciei como o mais velho segurava e imobilizava, firme mas delicadamente, o pé do ferido. Parecia agora explicar-lhe, enquanto apontava também para mim, que ele não se podia mexer, eu estava a ajudar, não era preciso chorar. Fiquei sem saber, na verdade.

No entanto, tudo naquilo me enterneceu. E enterneceu-me mais ainda quando voltou a pô-lo no colo e me agradeceu em bengali — isso eu entendi! —, enquanto abanava a cabeça. Pedi ao meu colega que se certificasse que iam em segurança. Viviam ao fundo daquela rua do campo de refugiados.

Dos tempos de faculdade não me lembro de nenhum livro que aborde o momento de consulta exclusivamente com crianças, quando uma é responsável por outra (ou outras). O mundo não deveria precisar desses livros. Mas, pelo que vivo por aqui e vou lendo nas notícias, o mundo onde vivemos hoje carece, entre muitas outras coisas, disso também.

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