Porque não querem os deputados proteger as crianças?

Como sociedade temos o dever de testemunhar e registar partido a partido, deputado a deputado, quem se recusa a proteger as crianças.

O meu último artigo abordou o tema de como as crianças são abandonadas pela justiça. Após a decisão da última semana dos nossos deputados a realidade do abandono e desproteção absoluta das nossas crianças não poderia ser mais clara. O projeto de lei do Bloco de Esquerda que pressupunha a atribuição do estatuto de vítima às crianças que testemunhassem situações de violência doméstica foi chumbado na especialidade com votos contra do PS, PCP e CDS. Tendo apenas o PSD votado favoravelmente ao lado do BE nesta matéria.

Porque não querem o PS, PCP e CDS proteger as crianças?

Está cientificamente comprovado e largamente documentado em inúmeros trabalhos da comunidade científica o grave impacto da violência no desenvolvimento de uma criança. Veja-se por exemplo a TEDTalk da Dra. Nadine Burke Harris sobre como os traumas de infância afetam a saúde ao longo de toda a vida. Os traumas de infância afetam o desenvolvimento do cérebro, o sistema imunológico e endócrino, aumentam em três vezes o risco de morte por doenças cardíacas e de cancro de pulmão e reduzem em 20 anos a esperança de vida.

Uma criança que presencia violência doméstica sofre um impacto grave no seu desenvolvimento psíquico e físico, estando comprovado que intervenções precoces são essenciais para assegurar uma melhoria na saúde futura.

O que é proposto no Projeto de Lei n.º 1183/XIII/4.ª (BE)?

Alteração à Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro

Artigo 2.º

(...) Para efeitos da aplicação da presente Lei, considera-se:

b) “Vítima especialmente vulnerável” a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social e as crianças que vivam nesse contexto de violência doméstica ou o testemunhem;

Artigo 31.º

(…) 1 - Após a constituição de arguido pela prática do crime de violência doméstica, o tribunal decide, no prazo máximo de 48 horas, a aplicação, com respeito pelos pressupostos gerais e específicos de aplicação das medidas de coação previstas no Código de Processo Penal, de medida ou medidas de entre as seguintes:

Artigo 33.º

(…) 1 - O juiz, no prazo de 72 horas, procede à inquirição das vítimas, aqui se incluindo as crianças que vivam nesse contexto ou o testemunhem, no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

Em janeiro deste ano, o Conselho da Europa, no relatório do GREVIO, sublinhava a necessidade de alterações legislativas para se assegurar a proteção das crianças de acordo com o estabelecido na Convenção de Istambul, da qual Portugal é signatário:

  • 219. O GREVIO insta as autoridades portuguesas a tomarem medidas, incluindo alterações legislativas, para garantir a disponibilidade e a aplicação eficaz das ordens de restrição e/ou de proteção. Deveria ser possível incluir crianças na mesma ordem de proteção das suas mães, sejam as crianças vítimas diretas ou indiretas, já que elas mesmas experienciaram a violência ou por testemunho ou na própria pele.

O relatório da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica refere também essa necessidade:

  • Em todas as situações em que ocorram episódios de violência contra as mulheres e violência doméstica, deverá averiguar-se se existem crianças/jovens direta ou indiretamente envolvidos ou afetados, proceder-se à avaliação do risco que correm e adotar-se as adequadas medidas de segurança, que atendam às suas específicas necessidades, bem como ser efetuada comunicação a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens ou desencadear-se procedimento judicial com vista à sua proteção e promoção dos direitos.

Várias outras entidades têm enviado pareceres positivos a uma alteração da lei:

“É importante também o reconhecimento expresso da criança no contexto de violência doméstica enquanto vítima deste crime, e o direito a participar nos processos judiciais”, UNICEF.

“Estamos claramente de acordo quanto ao reconhecimento legal expresso das crianças enquanto vítimas do crime de violência doméstica quando vivenciam esse contexto no seio da família que integram e quando sejam testemunhas presenciais dessa mesma realidade”, parecer da Procuradoria-Geral da República.

“O conceito de vítima deverá incluir as crianças que presenciam e que também são vítimas diretas dessa violência. Para proteção tanto das vítimas (...) devem estas ser poupadas a ter de relatar uma e outra vez os episódios traumatizantes por que passaram para se fazer a prova, devendo ser ouvidas apenas uma vez, valendo essas declarações para memória futura, evitando-se desta forma a sua dupla vitimização”, Associação Dignidade e APC.

“A proposta do BE é muito pertinente quanto à consideração das crianças como vítimas na lei 112/2009 – algo que vai ao encontro da Convenção de Istambul, que considera no seu preâmbulo in fine que as crianças são vítimas apenas por testemunharem a violência na família”, Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres.

“As crianças são vítimas diretas do crime de violência doméstica praticado no ambiente em que vivem. (...) No caso da violência doméstica tal é flagrantemente comum acontecer com as crianças e mesmo com as pessoas que são familiares da vítima e que com ela mais privam”, Associação Portuguesa de Mulheres Juristas.

Apesar do chumbo, o Bloco de Esquerda irá levar o Projeto Lei a votação no plenário.

Como sociedade temos o dever de testemunhar e registar partido a partido, deputado a deputado, quem se recusa a proteger as crianças.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
 
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