As mulheres não bebem whisky

Estes três exemplos, que resultariam curiosos num compêndio de antropologia cultural, não aconteceram há oitenta anos, nem há cinquenta, nem há vinte. Acontecem agora, em Portugal.

As desigualdades entre mulheres e homens não se manifestam apenas nas grandes questões como o emprego, os usos do tempo, as responsabilidades de cuidados ou a violência.

Elas manifestam-se, sobretudo, nos pequenos nadas do quotidiano, em gestos, palavras ou comentários que demonstram, em toda a sua força, os preconceitos e as imagens que a sociedade portuguesa (ainda) partilha, relativamente ao que são os comportamentos “próprios” do feminino e do masculino.

Vem esta reflexão a propósito de um episódio que me foi contado pelo meu filho, e que ocorreu numa festa de casamento na qual ele esteve presente. E foi assim o episódio: depois do jantar, o empregado, ao serviço de uma reputada casa de catering, aproximou-se da mesa trazendo uma garrafa de whisky, com a qual serviu os convidados... mas, atenção, que apenas os homens!

Sim, porque no entendimento deste senhor (e, talvez, de tantos outros senhores…) são os homens quem bebe whisky, não as mulheres. É que, vamos lá ver, mal iria o mundo se o sexo frágil andasse por aí a beber whisky!

Mal iria o mundo não! Mal vai o mundo, como me dizia, há pouco tempo, o dono de uma mercearia no centro de Braga. E não vai mal, este mundo, por causa do ambiente, nem dos refugiados, nem dos “trumps” e dos “putins” que nos desgovernam.

Vai mal o mundo, isso sim, porque, e “veja-se bem a pouca-vergonha”, os restaurantes do centro de Braga estão cheios de mulheres que, em pares ou em grupos, se sentam à noite, nas esplanadas, a beber garrafas de vinho e a fumar!

E mal vai o mundo, também, para o Sr. José, que trabalhava num café onde eu vou habitualmente e que, numa certa manhã, me comunicou que entregara a sua carta de demissão, explicando-me, indignado e entristecido, que o fazia porque trabalhava há já mais de vinte anos na casa e “veja lá a senhora, que eu ganho o mesmo que uma mulher!”.

Ganhar o mesmo que uma mulher, olha que coisa! E isto quando as mulheres, como toda a gente sabe, não se concentram no trabalho, sempre distraídas, a pensar nos filhos e no empadão que hão-de fazer para o jantar... ou, pelo menos, assim o julgará o director de uma instituição bancária, que sugeriu a uma amiga minha (quadro superior dessa instituição) que retirasse da secretária, no gabinete onde recebe clientes, a fotografia do marido e dos filhos, porque “aquilo” dava um “aspecto pouco profissional”.

Valha-nos a nós (eventual clientela?) e ao prestígio (?) do banco em questão, ser dirigido por semelhante exemplo de profissionalismo e seriedade, que, por acaso, até tem (talvez para atestar uma exemplar confiabilidade) colocada sobre a sua secretária, no gabinete onde recebe clientes, nada mais nada menos do que a fotografia da mulher e dos filhos. Mas é claro que não é a mesma coisa, até porque a ele, pelo menos, não o há-de afligir o empadão para o jantar!

Estes três exemplos, que resultariam curiosos num compêndio de antropologia cultural, não aconteceram há oitenta anos, nem há cinquenta, nem há vinte. Acontecem agora, em Portugal.

Ou melhor, estão a acontecer agora, em Portugal, e poderíamos sentir-nos tentados a pensar que são apenas episódios pontuais, num país com uma legislação tão igualitária e com a segurança de tantos e tão variados organismos a tratarem destas matérias.

A questão é que são estes episódios, de confrangedor atavismo e ainda bastante comuns, que ditam e condicionam as outras tantas desigualdades: aquelas em que as mulheres ainda precisam de provar que, além de serem mães, trabalhadoras, políticas, cuidadoras ou activistas, afinal até conseguem (também) beber whisky... Caramba, que é de homem!

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