Tshegue, um vudu afropunk

Dakou e Faty no Festival Med: “O que nos interessa na percussão é a capacidade de nos pôr num estado completamente eufórico, em que saímos dos nossos corpos e em que a percussão parece alimentar uma sessão de vudu.”

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Alexandre Serôdio

Nicolas “Dakou” Dacunha conheceu Faty Sy Savanet quando esta trabalhava num bar parisiense chamado L’Embuscade. Dakou, percussionista francês de ascendência cubana, tinha passado os últimos anos a tocar com vários cantores (integrou as bandas de Mayra Andrade ou Yael Naim), enquanto Faty, imigrada da República Democrática do Congo no final da adolescência, espremia as suas energias artísticas a actuar com uma banda de punk-garage. Acontece que, no momento em que se cruzaram, ambos tinham vontade de se entregar a algo diferente, mais sintonizado com uma verdade musical que nenhum dos dois sentia viver na altura.

“Descobrimos que tínhamos os dois vontade de criar um projecto em torno da percussão e da voz”, conta Dakou ao PÚBLICO no Festival Med, onde actuaram este sábado. Faty Sy Savanet chama-lhe um projecto no encalço do “batimento cardíaco”, entregando-se à percussão para embarcar numa zona de transe. “Porque o que nos interessa na percussão é a capacidade de nos pôr num estado completamente eufórico, em que saímos dos nossos corpos e em que a percussão parece alimentar uma sessão de vudu.” 

Sem planos ambiciosos que não passassem pelo encontro dos dois em estúdio, tacteando a música que brotaria dessa união espontânea, começaram sem pressas a montar um reportório nascido de uma abordagem puramente intuitiva. Dakou preparava um beat, apresentava-o à cantora e os dois lançavam-se nessa espiral de ritmo e voz até que uma forma começasse a emergir. “As músicas nascem sempre dessa situação de estarmos os dois a tocar ao vivo [no estúdio]”, diz a cantora. “Eu sinto mesmo a necessidade de um ritmo para começar a cantar e a convocar a minha energia para a música.” “Depois de estabelecida essa base”, diz Faty, “confiamos que será a música a falar-nos e mostrar-nos o que fazer.”

Basta depois concentrarem-se nessa vibração inicial para escutarem “no interior dos ritmos” a sugestão de outras sonoridades – de guitarras, baixos e teclados – que Dakou vai acrescentando a um manancial rítmico que nem exigiu particular pesquisa. “As músicas tradicionais, sejam do Congo ou da América do Sul, estão pejadas de diferentes ritmos que temos o tempo todo na cabeça”, diz o percussionista. E a pesquisa, aponta a vocalista, implicaria uma premeditação de que os dois sempre quiseram fugir. “Quando as coisas são muito fabricadas, soam precisamente fabricadas”, dizem.

Essa verdade soou de forma tão evidente desde que lançaram o seu primeiro tema, Muanapoto, em 2017, que nem mesmo a adopção de lingala (um dialecto congolês) como veículo primordial destas canções – que logo foram carimbadas como afropunk – se mostrou um entrave ao pronto reconhecimento do duo um pouco por todo o mundo. Os EP Survivor (2017) e Telema (2019) só vieram reforçar o alcance de uma sonoridade que junta a embriaguez dos sentidos proporcionada por ritmos tribais a uma crueza rock que não dá tréguas. Telema, aliás, significa algo como “levantem-se”. “É uma acção e uma tomada de consciência”, explica Faty. “Um apelo à sublevação.” Mesmo sem perceber uma palavra de lingala, essa urgência está marcada a brasa em cada segundo de música dos Tshegue.

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