Mãos manchadas de sangue

Perante estes documentos tão críticos sobre os últimos anos na Europa o que apetece perguntar é: o que mudou desde o eclodir da crise financeira e económica? Nada de significativo.

Cerca de 130 mil mortes poderiam ter sido evitadas se as políticas de austeridade não tivessem tido um impacto tão negativo no Reino Unido entre 2012 e 2018. Disse-o com indignação, na BBC, a influente comediante Francesca Martinez, citando dados de um estudo recente do Institute for Public Policy Research, num testemunho que se tornou viral.

Há políticos com “as mãos manchadas de sangue”, conclui com veemência a também escritora inglesa, que sofre de paralisia cerebral, e que falava no contexto de um programa de TV onde se analisava a acção do Governo conservador em relação às pessoas com deficiências. A ressonância do que afirmou deveu-se à assertividade emocional. E ao facto de a austeridade continuar a ter impacto na vida da larga maioria.

Gostamos de personalizar a culpa. Necessitamos de apontar o dedo a alguém. Sossega-nos isso. É como se pudéssemos dizer para nós próprios que o mundo ainda se divide entre bons e maus. Mas é também distractivo. Temos mais dificuldade em decifrar a complexa malha socioeconómica onde vivemos. Passamos o tempo a pensar que tudo o que de mal acontece se deve à corrupção ou conspiração. Mas custa-nos compreender e aceitar que sejam os mecanismos e a própria lógica interna do sistema que validamos que abre espaço para a crueldade.

Não estamos habituados que esse tipo de violência abstracta, sistémica, regular e invisível, seja denunciada de forma clara, dizendo-se: a austeridade mata. Martinez fê-lo, nomeando um quadro onde se mesclam doenças causadas por ineficiente prevenção, despolitização da saúde, desintegração dos serviços públicos, cortes orçamentais, quebra dos laços de solidariedade, competição extrema, desigualdades e exclusão social.

Ainda esta semana, um outro estudo, de um relator especial da ONU, nomeava as consequências na saúde mental das medidas de austeridade pós-2008 na Europa. Recorde-se que em Portugal, nesses anos, a taxa de desemprego subiu (10,9% em 2010) e os rendimentos familiares desceram (7% entre 2009 e 2013), com o risco de pobreza a aumentar até 2015. Perante este panorama, o mesmo relatório denunciava a excessiva medicalização nos últimos anos, que se limita a perpetuar as condições que levaram à sua utilização, quando o que haveria a fazer seria apostar em políticas de antecipação, na educação, na procura da justiça social e na luta decidida às desigualdades.

Não se trata de suprimir deste cenário dados biológicos ou de negar manifestações neurológicas ou eventuais alterações químicas, mas de olhar de forma integrada para as questões, fazendo participar nelas factores psicossociais, o impacto na saúde pública de medidas governamentais e as condições sociopolíticas que abrem espaço à irrupção ou perpetuação dos problemas. Perante estes documentos tão críticos sobre os últimos anos na Europa o que apetece perguntar é: o que mudou desde o eclodir da crise financeira e económica? Nada de significativo.

Continuamos a acreditar com uma fé pouco racional nos mercados que nos organizam. Ficámos muito aquém na tentativa de regular o sistema financeiro. Os desequilíbrios continuam, com a agravante das assimetrias terem aumentado e a qualidade da protecção social ter decaído. É verdade que a austeridade pôde ser aliviada em alguns contextos, mas o quadro sistémico que a permitiu não se alterou profundamente. A instabilidade apresentada, de forma artificial, como sendo inevitável, instalou-se e naturalizou-se nos nossos dias. O que temos hoje são existências inseguras, sempre em movimento, tentando corresponder às lógicas de flexibilidade, mas paralisadas, sem horizonte de futuro. As consequências estão aí na forma de ansiedade, depressão e doença.

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