Viva M.E.C. e a solidão

Miguel Esteves Cardoso diz que qualquer jovem que queira ser escritor deve escrever todos os dias, pelo menos duas horas. Se não fosse ele a dizê-lo, acharia uma perfeita idiotice (e chegamos mais uma vez à velha conclusão de que importa mais o mensageiro do que a mensagem per si).

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Nuno Ferreira Santos

No domingo recebi uma mensagem de um tio a dizer que era imperativo ler a recente entrevista do Miguel Esteves Cardoso ao PÚBLICO. Fi-lo.

Miguel Esteves Cardoso diz que qualquer jovem que queira ser escritor deve escrever todos os dias, pelo menos duas horas. Se não fosse o Miguel Esteves Cardoso a dizê-lo, acharia uma perfeita idiotice (e chegamos mais uma vez à velha conclusão de que importa mais o mensageiro do que a mensagem per si). Já viram a maçada que é chegar a casa, pôr os bifes a descongelar, jantar, ver o telejornal, criticar alguém em pensamentos, lavar a loiça e depois, sim, chegar ao momento de sentar no glorioso trono etéreo da escrita?

A arte – ou seja, a escrita – não tem de ser espontânea e selvagem? Essa espécie de bootcamp diário que o gigante M.E.C. sugere não parece existir apenas com o intuito de que o que se está a escrever seja publicado? Não parece estar aqui latente um detrimento da arte orgânica em lucro de se atingir a tarefa profissional que se exige ao M.E.C.? Mas, afinal, o que se espera de um escritor? A arte selvagem e crua ou o texto padrão de fábrica diário?

Poder-vos-ia levar no meu argumento com facilidade se não estivesse a ser desonesto. O que o M.E.C. diz, na verdade, é que essas duas horas diárias são essenciais para desenvolver positivamente a escrita. Para se limarem arestas. Não necessariamente escrever com o intuito de publicação, mas sim escrever por escrever – ao estilo de um fumegante artista das letras. Chamo atenção, então, a quem vos ludibria através da escrita como fiz no anterior parágrafo. Estarão, todavia, os caros leitores já habituados: é costume diário nas melhores manchetes jornalísticas “do nosso Portugal”. Não confiem em nós.

Para além desse treino diário, M.E.C. explica-nos ainda que um escritor precisa também de solidão. Solidão para observar. Solidão para ter de se distrair de estar sozinho. Nesta fase, o proto-escritor observa e absorve com o coração esponjoso a existência humana como espécie — tal como um espectador num teatro. Depois intelectualiza. Absolutamente correcto. Assim como “para fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza”, a escrita precisa de solidão para ter qualidade. Não só – claro está – no momento da escrita, mas sim em todo o processo a montante desta. Ou seja, o dia a dia: o ir à farmácia, o ir beber uma cerveja, o ir ver um jogo de futebol popular – é aí que começa a escrita. Na absorção da “carne” do momento. A qualidade desta absorção alicerçar-se-á na sensibilidade do autor, que por fim derramará em forma de palavras o que o seu coração ensopou.

Já a solidão inerente à qualidade da escrita não será proporcionalmente combatida consoante o número de pessoas à volta. É natural encontrarmos mais solidão numa multidão de 2000 pessoas do que a tomar um café com um bom amigo. A solidão não se combate com uma quantidade avolumada de indivíduos diante de nós, mas sim com a influência desses indivíduos em naturalmente nos tirarem da gruta em que vivemos. E chamo a vossa atenção para o “naturalmente”. Para se sair da solidão, não se pode estar consciente de que se está a sair da solidão. É um processo metafísico que não pode ser intelectualizado, pois ao ter-se consciência que se está a sair da solidão, está-se, por si, num ato de solidão: voltamos a rodar a bússola para nós.

Sabem os melhores escritores da nossa praça o quanto se romantiza a solidão. O quanto esta é necessária para se sentir o travo amargo que os faz escrever tão bem: a necessidade da tristeza, a procura inalcançável e o cinzento sofrimento. A solidão é um sítio. Um sítio querido e necessário à beleza do sofrimento que é estar vivo. É esta penetração intelectual da solidão que torna humanos sensíveis em ícones da escrita (por vezes movidos a vaidade, o que não tem mal algum). Se imaginássemos um carro, tratar-se-ia da primeira mudança — sem ela não se poderia iniciar a marcha da caneta.

Obrigado, M.E.C., pela lembrança da beleza de se estar só. Apenas dessa forma se consegue a predisposição para absorvermos intelectualmente certos temas. Ainda bem que o PÚBLICO lhe paga para escrever sobre rabanetes e sobre a chuva.
Há quem sinta.

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