O “acordo ortográfico” vive numa realidade paralela, como a de Trump

É com o AO90, e não antes, que temos mais “erros de ortografia” e uma maior “insegurança linguística”.

A minha crónica “Socorro, querem roubar-nos a língua e deixar-nos mudos!”, suscitada por um artigo de Henrique Monteiro no Expresso sobre o “acordo ortográfico”, motivou uma mensagem do actual presidente do Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, Telmo Verdelho, recebida por correio electrónico à qual particularmente respondi. No entanto, como no final o autor dizia expressamente “Não tenho reservas sobre a divulgação desta mensagem”, e porque ela contém alguns pontos que merecem reflexão acrescida, aqui a divulgo na íntegra (mas sem divisão de parágrafos), deixando para o fim os comentários julgados úteis.

“Estimei muito ver-me citado no texto crónico da sua paixão ortográfica de 30 de maio. Por amor da verdade, e pelo respeito devido aos seus leitores, deverá retificar a informação sobre a percentagem da mudança (2%), na atualização ortográfica. A única estatística fiável, que toma por base o córpus do Português fundamental, dá conta duma percentagem de alterações que anda próxima de 0,1%, vinte vezes menos. Trata-se duma mudança realmente residual e insensível para a generalidade dos utilizadores da escrita, mas não inútil, porque incide, com grande precisão, sobre a ocorrência de ‘consoantes mudas’, particularmente motivadora de ‘erros de ortografia’ e de insegurança linguística. A perda invocada da informação etimológica é praticamente nula, porque as palavras mantêm, na sua configuração, uma bastante memória do étimo latino. A linguística acumulou, nos últimos cem anos, muita informação inovadora sobre a língua, que inclui obviamente a ortografia, e desenvolveu uma reflexão crítica, com rigor de ciência, que não se compadece com o empirismo das proclamações, aliás louváveis, do ‘amor da língua’. Os linguistas não são ‘bonzos’, mas têm estudo. O seu discurso metalinguístico e o dos seus amigos que desesperam contra o AO90, é pouco esclarecido, geralmente muito perentório, e muitas vezes com dados falsificados. O senhor e os seus amigos, não querem saber porque é que não têm razão.” [sic]

Comecemos pelas percentagens. A “única estatística fiável” (sic) dirá que a percentagem da mudança provocada pelo AO90 não serão os já ridículos 2% mas bem menos, uns 0,1%. Passando ao lado de esta curta missiva ter os tais 2% (quatro palavras num total de 216: “maio”, “retificar”, “atualização” e “perentório”), se a mudança incidia apenas em 0,1% (o que não é de todo crível, pelos textos que todos os dias lemos) para quê o AO? 0,1%, a tal mudança “residual e insensível”, valeria todo o esforço feito, nacional e internacional, para celebrar um acordo ortográfico? Não valeria, de todo. O argumento, em lugar de favorecer o acordo, vira-se contra ele. E o que hoje conhecemos dos resultados de tal façanha é o que está à vista: desnorte ortográfico, deformações na fala, erros a coberto do acordo ou já sem preocupação de seguir acordo algum, uma absoluta miséria. E a isto chamam “ciência”?

Mas há uma justificação: a mudança seria “residual […] mas não inútil, porque incide, com grande precisão, sobre a ocorrência de ‘consoantes mudas’, particularmente motivadora de ‘erros de ortografia’ e de insegurança linguística.” É curioso que os erros e a insegurança tenham surgido sobretudo depois do AO90 e não antes, multiplicando-se a cada dia como um vírus implacável. A recolha, utilíssima, com dados concretos (não com paixão empírica), feita regularmente pelos Tradutores Contra o Acordo Ortográfico, prova ao que chegámos. É com o AO90, e não antes, que temos mais “erros de ortografia” e uma maior “insegurança linguística.” Mas não há problema, é tudo em nome da “ciência”, não da “paixão”.

Por falar em paixão: os “apaixonados” são impetuosos, pouco cerebrais, parciais, “cegos” pelo objecto da sua devoção; logo, o contrário dos que reflectem, dos que têm “estudo”, dos que se regem pelo “rigor da ciência”, da “linguística” e da sua acumulada “informação inovadora”. Como é extraordinária esta inversão das coisas! E como ela ilude o muito que se argumentou, e escreveu, e afirmou, fundamentadamente (e por linguistas, sim, também por linguistas!), contra os malefícios de um acordo que acabou por ser aprovado como noivos que se arrastassem até ao altar, casados por obrigação e sem sequer se conhecerem! A isto se dirá que é paixão? Não, não é; é fúria, pela insistência num ardil medíocre que podemos comparar à arrogância de gente como Trump: mesmo o que ele diz (e está gravado), nega tê-lo dito. E os que o seguem acreditam, porque preferem a sua palavra à evidência dos factos.

O AO90 vive na mesma realidade paralela. A fraqueza argumentativa dos seus defensores é tal que nos vêem como os que “desesperam contra o AO90”, quando na verdade o desespero é deles. Porque os seus argumentos não resistem a debates públicos nem à prova dos factos. O AO90 há-de cair da mesma forma que nasceu e permanece: sem futuro nem glória,

A propósito: o lema do Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa é Nisi utile est quod facimus stulta est gloria. (Se não for útil aquilo que fazemos, a glória é vã.) Deviam meditar neste lema, porque a crueza das suas palavras não é de todo “acordizável”.

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