Desobedecer à GNR é uma opção

Obedecer é mais prático e mais conveniente, mas operação de cobrança de dívidas à beira da estrada prova que às vezes a melhor opção é desobedecer. Às vezes, as autoridades não têm razão.

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Ao ler as notícias sobre a Acção sobre Rodas, a operação stop organizada pela Autoridade Tributária e a Guarda Nacional Republicana, fiquei a pensar se teria presença de espírito para recusar-me a entregar o carro.

Em cinco horas de operação foram parados três mil carros e as suas matrículas cruzadas com o sistema fiscal. Quem tinha dívidas e não podia pagar, ficou sem carro. Balanço: dois ligeiros e um camião penhorados. Em plena A42, a RTP filmou o Sr. Júlio a tirar dois cavalos de um camião com a ajuda de uma criança de oito ou nove anos, cada um a puxar um cavalo por uma corda-a-fazer-de-trela — por sorte eram mansos. O Sr. Júlio devia portagens. Não sei como ele, os cavalos e os outros condutores apeados saíram dali. Uma opção seria montar os cavalos. A outra seria desobedecer.

Há dias, um amigo perguntou-me:

— Mas porque é que não desobedeceste? Recusavas a ordem e a polícia tinha de chamar a polícia.

O caso é diferente, mas a questão ética é igual. Se a polícia nos manda fazer uma coisa que não faz sentido, cumprimos e depois contestamos ou desobedecemos?

Esta era a circunstância: um tuk-tuk está estacionado num lugar identificado com o sinal de estacionamento “normal” (azuis com “p” branco); a 100 metros, há um sinal que indica que ali podem estacionar quatro tuk-tuk. Estão lá 20 e, à volta, outros tantos. No meio disto, há um tuk-tuk que ocupa o lugar dos carros “normais”. Peço que saia. O motorista não está. Peço aos colegas, não sabem. Espero e digo: “Isto não pode ser. É um descontrolo, nem se consegue andar. Vou chamar a polícia.” Não é preciso. Aparece um e manda-me sair dali. Digo que estou à espera que o motorista do tuk-tuk volte, porque aquele é um lugar de carros. O que diz o polícia? “O primeiro a chegar é o primeiro a servir-se.”

Talvez por ser 25 de Abril e eu estar a chegar da praça com um ramo de 45 cravos vermelhos — um por cada ano de democracia — a resposta do polícia caiu-me como uma pedra na cabeça. Contesto e vem a ameaça: sai ou fica sem carro.

Podia ter ido estacionar nos lugares reservados para os tuk-tuk e devolver o argumento ao polícia. Ou podia ter desobedecido.

Há momentos em que a única solução é desobedecer. Em 1974, foi isso que o capitão Salgueiro Maia respondeu quando lhe perguntaram porque é que tinha ajudado a fazer o 25 de Abril. E, em 1849, foi isso que o filósofo norte-americano Henry David Thoreau propôs no seu famoso ensaio A Desobediência Civil (recém-editado pela Relógio D’Água). Thoreau tinha razões para estar zangado com o seu governo: era contra a escravatura (8% das famílias americanas eram donas de quatro milhões de escravos — e ainda foram precisos 16 anos e uma guerra civil para ser abolida) e era contra a guerra com o México.

É neste texto que Thoreau pergunta: “Deverá o cidadão, por um momento que seja, ou num grau mínimo, abdicar da sua consciência em favor do legislador? Porque é que cada homem possui, então, uma consciência? Deveríamos ser homens primeiro e súbditos depois. O ideal não é cultivar o respeito pela lei, mas sim pela justiça.” Mais à frente, defende que “a lei nunca tornou os homens mais justos”.

Não estou a propor uma revolução, nem a desobediência civil contra o governo. Salgueiro Maia lutou contra uma ditadura, Thoreau contra “uma organização política que [era] também o governo dos escravos”. Os dois tinham razões fortes para desobedecer — e o próprio governo de António Costa disse que a operação Acção sobre Rodas foi “um erro” que “não se repetirá”.

Mas viver em democracia não é obedecer de forma cega. Agora que a tempestade da Acção sobre Rodas passou, ganhámos argumentos para contestar ordens absurdas. “Desproporção” (uma dívida de 100 euros justifica a penhora de um carro?), “inutilidade” (“há mecanismos de penhora electrónica”), “uso de força excessiva” (cobrar uma dívida sob a ameaça de despojar o cidadão de um bem), “abuso fiscal” (os cidadãos tinham sido notificados ou estavam em processo de contestação?), “violação da liberdade” (“intercetados na estrada e temporariamente privados da sua liberdade apenas para confirmar se têm dívidas”), do “direito ao bom nome, reputação, imagem e reserva da vida privada” (para os acompanhantes), da “dignidade humana” (tem o contribuinte boas razões para não ter pago, porque há um erro ou a dívida está prescrita?). E, genericamente, “abuso de poder”, base para uma queixa-crime. Não sou eu a dizer, eu não sei nada de leis. Foram os especialistas. A estes, junto uma pergunta: e se os cavalos tivessem fugido a correr pela A42? Calculou-se o risco de desordem pública?

Obedecer é mais prático, mais conveniente e dá menos trabalho. Mas a operação Acção sobre Rodas prova que às vezes a melhor opção é desobedecer. À GNR, à PSP, à polícia de trânsito, à polícia municipal. Às vezes, as autoridades não têm razão.

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