O que podemos aprender sobre turismo com Amesterdão

O texto oficial da estratégia de Amesterdão para 2018-2022 inclui esta frase: “Quão hospitaleiros podemos ser se vomitam com frequência na nossa varanda?”

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Como noutros tempos nos disseram que não havia alternativa à austeridade, agora dizem-nos que não há nada a fazer em relação ao turismo em Lisboa. Os tuk tuk, o ruído, as esplanadas, as bancas improvisadas e as lojas de bugigangas multiplicam-se e os residentes são expulsos das suas casas? “Paciência, é o preço a pagar.” Porque o turismo vale 14% do PIB, temos de agradecer a Deus por Lisboa estar na moda, não fazer nada e rezar para que dure.

Não direi que esta “é a falsidade mais descarada jamais imposta à humanidade”, como Thomas Paine escreveu em Common Sense sobre uma “certeza” que queria combater — mas está perto.

A história do turismo mostra que a ausência de bom senso destrói a harmonia e avisa que é boa ideia impor limites. Utopia?

Vejamos o caso de Amesterdão, a cidade da tolerância. O documento oficial da estratégia municipal, Cidade em equilíbrio 2018-2022, explica que a ambição actual é “encontrar um novo equilíbrio” entre “visitantes e residentes”. No texto descobrimos que o novo lema de Amesterdão é “o visitante é bem-vindo, mas o morador é central” e que “os aspectos positivos do turismo, como o emprego e as receitas para a cidade, são cada vez mais ofuscados pelas consequências negativas”, como o “incómodo, as multidões e o lixo”. Conclusão? “A qualidade de vida está em declínio e alguns bairros correm o perigo de perder a identidade.”

Dirão que isto não tem nada a ver com Lisboa, que está atrás em riqueza, fama e quantidade de turistas. É verdade. Mas são os próprios holandeses que dizem que o problema de Amesterdão é parecido com o de Lisboa. “Desenvolvimentos similares estão a ocorrer em cidades como Barcelona, Lisboa, Berlim, Praga e Dubrovnik.” Porquê? Há mais pessoas com dinheiro e tempo para viajar, os voos estão mais baratos e as reservas e plataformas online facilitam tudo.

A nova estratégia tem seis metas: reduzir o incómodo causado aos residentes pelo turismo; aumentar o mix funcional e acabar com a monotonia de lojas; aumentar o espaço livre; melhorar o equilíbrio financeiro da economia do visitante; criar diversão sustentável e distribuir os turistas. De entre as 70 medidas operacionais, lê-se a palavra “incómodo” dezenas de vezes. Os holandeses não estão a fazer de conta, nem a tratar os residentes com condescendência. Directos como é sua tradição, dizem que os turistas são uma “chatice” para os moradores. Há campanhas a “educar” os turistas, mupis e vídeos por todo o lado. Depois de anos a chamar turistas, hoje o espírito é outro. Não encontrei a versão da nova estratégia em inglês, mas com o Google Translate percebe-se tudo, incluindo esta frase: “Quão hospitaleiros podemos ser se vomitam com frequência na nossa varanda?”

Há uns tempos, conheci um casal que mora no Chiado. Diz o marido:

— Estamos a dar em loucos. As excursões do Pubcrawl passam pela nossa rua.

Pubcrawl...?

— Sim, é como o nome indica: ‘crawl’ de rastejar, beber até ficar de gatas. São excursões para andar a beber de bar em bar. À noite, os grupos vêm rua abaixo, todos bebados e aos gritos.

Isto é o que os holandeses chamam “incómodo”. Em Portugal, dizem-nos: muda de bairro.

Há uns dias uma vizinha passou no Martim Moniz e contou 170 pessoas na paragem do eléctrico 28. 170. Como ninguém ia acreditar, fotografou. Há autocarros que despejam ali grupos de turistas para um “passeio” no 28. O 28 está prestes a deixar de ser um transporte público para tornar-se num brinquedo turístico. Isto também é o que os holandeses chamam “incómodo” para os residentes.

Dezenas de bancos públicos do centro histórico são usados para os improvisados vendedores ambulantes pousarem arcas frigoríficas, caixas e tralha de todo o tipo. Faz sentido tratar o espaço público — que é de todos — como se fosse propriedade privada? As esplanadas da Rua Augusta têm 912 cadeiras. É preciso serem tantas? Há novas esplanadas por toda a Baixa. Até na Rua da Prata, sob as nossas barbas — e as da polícia, que tem uma esquadra ali. Já mal podemos caminhar. A placa diz que só podem estacionar quatro tuk tuk, mas a regra é estarem lá 22, mais uns à volta. Temos tuk tuks há seis anos, mas o regulamento com normas básicas continua na gaveta. O despacho de 2015 é violado todos os dias. Não é uma hipérbole. Os 15% de eleitores que as freguesias de Santa Maria Maior e da Misericórdia perderam desde 2013 também são reais. O centro histórico está a ficar uma Disneylândia de plástico, artificial e sem alma, e não podemos fazer nada para o travar? Não é verdade.

A Holanda é rica e o turismo só representa 5% do PIB e Portugal é pobre e o turismo vale 15%. Mas se pedimos ajuda aos engenheiros de Amesterdão para resolver a entrada de água no túnel do metro à beira Tejo porque eles tinham mais experiência, porque não fazer o mesmo com o turismo? Eles já sabem qual é o resultado da ausência de limites no turismo. Como os africanos passaram da era agrícola para a era digital, nós podíamos saltar do início do boom turístico para um turismo amigo das cidades, antes que o centro histórico se torne num gueto para turistas. Como os holandeses, podemos impor regras e limites.

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