Rituais, tatuagens e mulheres: os segredos das máfias

Federico Varese entrevistou mafiosos, leu escutas e consultou dados biográficos de membros de cinco máfias – da Yakuza à Cosa Nostra. Da investigação nasceu o livro Mafia Life. “Ao torná-los humanos também é mais fácil combatê-los”, diz em entrevista ao PÚBLICO.

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Foi quando desligou o gravador que Federico Varese, professor na Universidade de Oxford, percebeu onde tinha errado. “Agora podemos falar”, disse-lhe um dos chefes da máfia russa com quem se encontrou. Desde aí, este académico feito escritor que sempre alimentou o sonho de um livro sobre o tema que o apaixona – as máfias –, dispensou a gravação das conversas que teve com os líderes da máfia e tira apenas breves notas quando consegue encontrar-se com eles.

A segunda regra para entrevistar um mafioso é “nunca perguntar quem matou quem”. “Eu só quero perceber como é que eles vêem o mundo, porque para mim é o aspecto mais importante. Não sou polícia”, justifica o italiano, numa conversa com o PÚBLICO. E isso tem de ficar claro para eles. Afinal, o mais difícil de todo este processo é chegar à fala. “É um processo que demora muito tempo, porque tenho de ganhar a sua confiança.”

O resultado de mais de 20 anos de conversas e entrevistas, enriquecidos com todo o tipo de materiais que se possam revelar úteis (como escutas telefónicas das autoridades, processos e dados biográficos) serviram de matriz para o livro Mafia Life (Edições Desassossego), lançado este mês. Ao longo de mais de 200 páginas, o leitor consegue ter uma vista privilegiada sobre o que acontece à porta fechada junto de cinco das máfias mais influentes do mundo: a Yakuza japonesa, a máfia russa, a Cosa Nostra italiana, a máfia italo-americana e as Tríades de Hong Kong. E verá que são mais as semelhanças do que as diferenças.

O autor, que “sempre quis ser professor”, encontrou-se com o tema que lhe ocuparia os dias dos próximos 20 anos quase por acaso. “Quando estudava Ciência Política em Itália, observei à distância a transição para a economia de mercado e capitalismo na União Soviética. Decidi que queria estudar isso e por isso mudei-me para a Rússia durante um ano. Enquanto lá estava, registou-se um aumento do crime e comecei a perceber o quanto a violência era parte do capitalismo na Rússia daquele tempo. Por isso comecei a focar-me na máfia na Rússia em primeiro lugar”, explica. E a partir daí começou a aumentar o número de organizações que seguia.

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Federico Varese esteve em Lisboa esta semana Nuno Ferreira Santos

Um ritual de renascimento

O ritual é a primeira cerimónia e uma das mais importantes da vida de um mafioso. É onde se deixa definitivamente a vida antiga e se renasce – com um nome novo, como acontece na máfia russa, que, muitas vezes, faz referência ao local onde cumpriu pena.

Nestas cerimónias, o novo membro costuma ser apresentado por um padrinho, numa cerimónia secreta, à qual apenas alguns têm acesso. As regras são enunciadas aos novos integrantes. Em quase todas as máfias que Varese estudou, salienta-se a importância da hierarquia e a ajuda mútua ou proibição de violar mulheres ou de cobiçar a mulher de outrem.

Pelos relatos existentes do ritual Cosa Nostra (a máfia siciliana), por exemplo, o iniciado pica um dos dedos da mão com que dispara a arma e verte algum sangue sobre uma imagem sagrada – normalmente a da Virgem Maria – que depois queima até ser cinza.

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Mariano Troia, da máfia siciliana, um dos criminosos mais procurados em Itália, após a sua detenção, em 1998 Tony Gentile

Também as tatuagens são uma parte importante da identificação de um mafioso, especialmente junto da máfia russa. Quando um deles é preso, é costume que lhe perguntem se “as suas tatuagens falam por si”. Se um irmão (ou vori) descobre que um recluso ostenta tatuagens às quais não tem direito, as imagens podem ser-lhe arrancadas da pele com uma faca, lixa, um pedaço de vidro ou de tijolo.

Qual é a ideia do livro?
A ideia do livro é que cada capítulo do livro seja uma fase da vida de uma pessoa. Nascimento, trabalho, gestão, amor e casamento e eventualmente a morte. O primeiro capítulo é sobre o nascimento, mas não sobre o nascimento de uma pessoa: é sobre tornar-se noutra pessoa depois de te juntares à organização. O que eu descobri é que todos os rituais das cinco máfias são muito semelhantes e todos têm um tema: a transformação da personalidade assim que se tornam membros. É como se nascessem outra vez.

Quais são as principais diferenças e semelhanças entre as máfias que estudou?
No livro enfatizo principalmente as semelhanças. Claro que estas máfias nasceram todas em alturas diferentes, em países diferentes, e por isso são, por definição, diferentes. Por exemplo, algumas máfias usam tatuagens e outras não. A japonesa e a russa usam muitas tatuagens, os sicilianos, os italo-americanos e as Tríades [de Macau] não usam tanto. Mas são semelhantes na forma como se organizam: em grupos pequenos, coordenados por um comité. Isto porque na verdade todos fazem o mesmo trabalho que é governar, controlar territórios e mercados e explorá-los para os seus propósitos.

Mencionou as tatuagens. Quais são as mais comuns e o que significam?
Têm significados muito elaborados. Muitas das imagens usadas na Rússia, por exemplo, são religiosas. Por isso, têm igrejas e imagens da Virgem Maria ou Cristo. Assim que se tornam chefes, podem tatuar a estrela que significa isso mesmo: que se é chefe. O corpo torna-se numa tela na qual se inscreve o registo criminal. Significa que se é muito forte porque é muito doloroso fazer isto e a maioria delas são feitas na prisão, de forma muito rudimentar. E também tatuam partes privadas, como o pénis.

As japonesas são diferentes, certo? Visto que tatuam o corpo todo.
No Japão há um livro de imagens e as tatuagens são retiradas dali. O tigre é uma imagem muito importante e significa força. Todas têm significado, podíamos passar uma vida toda a estudá-los.

O passo a passo para chegar à máfia

Este é o tipo de investigação que obrigou Federico Varese (natural de Ferrara, no Norte de Itália) a viajar para vários pontos do mundo. “Uma das qualidades do meu trabalho é poder ir aos sítios que descrevo. Há um ditado inglês que diz que o maior crime é descrever alguma coisa sem nunca lá ter ido, por isso eu quero levantar-me da secretária e ir aos sítios”, disse.

Ao longo do livro são descritas algumas das suas viagens. Uma delas foi, na verdade, um regresso à cidade russa onde fez o seu doutoramento: Perm. Na altura, conseguiu conversar com um chefe da máfia, depois de ter conseguido ganhar a confiança de um empresário local. Quando voltou, para escrever este livro, tentou um segundo encontro – que não foi possível, porque já tinha morrido. Foi um polícia que lhe deu a notícia, e disse-lhe que tinha encontrado, entre os pertences do mafioso, uma fotografia na entrevista com o investigador.

Esteve nos casinos de Macau. Falou com a máfia de Hong Kong, depois dos ataques à ocupação dos estudantes. Esteve no Dubai onde foi celebrado um ritual. E, claro, visitou as regiões da sua Itália natal onde a máfia tem expressão: Sicília e Calábria.

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Ataque atribuído às Tríades a uma casa de apostas em Kowloon, Hong Kong, onde morreram seis pessoas, em Setembro de 1990 REUTERS/Dennis Owen

Como é o processo para se conhecer um mafioso?
Quando fui para a Rússia fazer o meu trabalho de campo nos anos 90, conheci muitas pessoas, nomeadamente empresários. Foi um deles que me convidou, porque queria saber se eu era de confiança. Quando conheço estas pessoas nunca pergunto “Quem é que matou?”. Eu só quero perceber o que é que eles vêem quando acordam e olham para o espelho. No que é que acham que se baseia a sua vida.

E o que é que descobriu? Como é que eles se vêem?
Bem, eles não se vêem como criminosos. Vêem-se como pessoas que coordenam coisas, arranjam reuniões e fazem acordos no meio do conflito e da disputa; como pessoas que reduzem o conflito numa comunidade porque aproximam as pessoas. Vêem-se também como uma instituição de autoridade, de governação numa comunidade e isso é o que os torna diferentes dos criminosos normais.

Quem foi a pessoa mais fácil de entrevistar?
É sempre difícil. Há pouco tempo estive na Colômbia para entrevistar o líder de um gang. Ele controla um bairro e só com a sua autorização é que se pode entrar, caso contrário é-se roubado ou morto. Comigo foi extremamente simpático. Isto lembra-nos (e eu tentei fazer isso no livro) que eles são pessoas. Não são diferentes de nós, são seres humanos também. Eu acho que ao torná-los humanos também é mais fácil combatê-los.

E houve alguém especialmente difícil?
Bem, na minha primeira entrevista, usei um gravador e no final da entrevista, só depois de o ter desligado, a pessoa com quem estava a falar disse-me: “Agora podemos falar”. Ao início cometi muitos erros e nem sempre consegui entrevistar toda a gente que queria.

Houve algo que o tivesse surpreendido, durante esta investigação?
Sim. Este chefe da Colômbia, lembro-me de ser muito afectuoso com os seus filhos. Na história russa lembro-me que a dada altura um dos chefes levantou-se e começou a cantar muito bem, como se estivesse num karaoke. 

Portugal na rota da Máfia

Kvicha trabalhou, em conjunto com quatro outros homens, para um dos clãs mais poderosos da máfia soviética: o clã Tbilisi, da Geórgia, com “filiais” e esconderijos espalhados por quase toda a Europa. Após um diferendo com um clã rival em Bari, Itália, Kvicha viveu uns tempos como foragido até reaparecer em Portugal, onde foi detido. Só mais tarde é que as autoridades portuguesas ficaram a saber que pendia sobre Kvicha um mandado de detenção europeu, emitido por Itália, pelo crime de homicídio.

Para todos os efeitos, Kvicha não era membro da máfia georgiana – apenas trabalhava para ela. Mas, cumprida a sua missão, foi iniciado através do Skype – uma prova de que a máfia também usa ferramentas tecnológicas para cumprir o seu propósito –, enquanto estava detido em território português.

Refere Portugal de forma breve no seu livro. Há mafiosos presos aqui?
Há uma pessoa da máfia georgiana, no meu livro, que está presa em Portugal porque comete um crime em Itália. Não é o único: digo isto porque há vários processos a decorrer em tribunais portugueses que envolvem estas pessoas. Tanto quanto sei são células muito organizadas desta máfia, que fazem roubos em apartamentos. Há muita gente indiciada por isso. Portugal, infelizmente, não está imune.

Sei que não é especialista no caso português, mas alguma vez tivemos aqui algum grupo que se assemelhasse à máfia?
Acho que não, pelo menos não como as máfias que estudei. Acho que aqui há mais o risco de haver importações de máfias estrangeiras. As máfias tradicionais emergem em poucos países. Não estão em todo o lado, mas podem movimentar-se. É esse o problema para os países que não são tradicionalmente de máfias.

Uma forma de fazer negócios

As máfias conseguem fazer dinheiro de diversas formas: da extorsão de empresários locais das cidades onde as máfias operam (que pagam por protecção, por exemplo) ao tráfico de droga. No livro, Federico Varese detalha o plano para fazer regressar a Cosa Nostra ao tráfico de droga, proveniente da América Latina, numa aliança transatlântica com a máfia italo-americana.

O autor segue também o rasto dos activos da máfia russa – por vários países do mundo – e descobre que há esquemas que só são possíveis devido a três figuras: o mafioso, os prestadores de serviços (que movimentam o dinheiro sujo) e os banqueiros que fecham os olhos à situação.

Quais são as condições para o nascimento das máfias?
As condições nestes países – Japão, Itália ou Rússia – eram muito semelhantes quando as máfias nasceram. Todos tiveram uma transformação económica muito rápida, com a transição para o capitalismo e a economia de mercado, algo que não foi bem gerido pelos Governos. Os direitos de propriedade não estavam bem definidos e por isso os novos proprietários de negócios pediam protecção. A máfia que operava como um quase-estado em alternativa ao Estado legítimo. Nos EUA não houve disso, mas houve proibição, que gerou enormes mercados ilegais de álcool que também não eram protegidos pelo Estado.

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Alguns membros da Yakuza mostram as suas tatuagens no festival Sanja Matsuri, em 2007 Elmimmo/Wikimedia Commons

A máfia existe em países onde as pessoas sentem que a democracia (ou o Estado) lhes falhou?
Numa sociedade totalitária, a máfia não consegue operar, porque nada opera para lá do Estado. Não é, por isso, surpreendente que a emergência das máfias venha com a liberdade do capitalismo no campo económico e político. A democracia anda de mãos dadas com a máfia, que muitas vezes controla o voto. As eleições por si só não asseguram a paz nem a verdadeira democracia porque o processo em si pode ser sabotado pelos homens que estudei. 

Para além da democracia, as acções da máfia têm capacidade de impactar os mercados em termos globais?
Sem dúvida. Tornam os mercados piores, porque muito do que fazem nos mercados legais é reduzir a competição. Por isso, tem-se menos qualidade por preços superiores porque as pessoas são expulsas dos mercados, são atacadas fisicamente. O resultado das máfias é má economia e má democracia.

A tecnologia veio trazer mais facilidade na organização? 
Eles são como nós: usam Skype, viajam na Easyjet, usam o Whatsapp​. Não devíamos estar muito surpreendidos. Tal como eu uso o Skype no meu trabalho, eles também usam. Ainda por cima é muito difícil interceptar o Skype e o Whatsapp, o que é uma vantagem.

Mas podem usar a tecnologia para formas mais sofisticadas de intimidação?
Não. As pessoas que estudei não são especialistas em cibercrime. Até podem usar a ajuda de especialistas, mas eles próprios não sabem.

Oficialmente, não há mafiosas

Apesar de conseguirem exercer um grande poder informal no seio destas organizações, as mulheres estão proibidas de ser iniciadas na máfia. O que não as impede de saberem quase tanto sobre os planos dos mafiosos e de gerirem a sua vida financeira.

Uma das únicas excepções conhecidas é Fumiko Taoka, mulher de Kazuo, o terceiro chefe da Yamaguchi-gumi, o maior sindicato de crime organizado do Japão. Quando o chefe yakuza morreu, Fumiko, então com 62 anos, tomou o lugar do marido. Primeiro de forma provisória, até o homem de confiança de Kazuo ser libertado da prisão. Só que isso nunca aconteceu e o sucessor acabaria por morrer na prisão. Então, numa decisão inédita, Fumiko foi autorizada a manter-se no lugar de chefia da organização, mas sem nunca se iniciar oficialmente na Yakuza.

As mulheres ainda estão impedidas de participar na máfia.
A sociedade mudou muito, assim como o papel da mulher. Quando estas máfias emergiram, as mulheres nem tinham direito a votar. Agora podem entrar na sociedade, apesar de serem muitas vezes discriminadas e não lhes pagarem tanto quanto aos homens. Há discriminação, mas também há igualdade em muitos aspectos. Ainda assim, a máfia ainda exclui as mulheres dos rituais e isso é muito intrigante: às vezes, as mulheres estão envolvidas nas actividades da máfia como mulheres ou filhas, mas não podem fazer o ritual.

Estão dispostos a mudar isso?
Provavelmente não. O meu argumento no livro é que as mulheres trazem consigo um elemento de desestabilização porque criam uma ligação emocional muito forte com os seus maridos e filhos. A máfia vê as mulheres como perigosas porque perturbam a cadeia de autoridade. São sociedades secretas de homens, feitas por homens e nas quais apenas os homens podem entrar. Os mafiosos também passam muito tempo apenas com homens e não com mulheres. O poder do amor é muito perigoso para as máfias e por isso é que eles têm medo. É por isso que não os vejo a admitir mulheres no futuro, mas teremos de ver. 

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