Europeus sem representação

Esta falta de representação provoca um alheamento face aos problemas comuns que empobrece o debate democrático.

No final de maio, mais de 500 milhões de europeus têm o direito de eleger os seus 751 representantes ao Parlamento Europeu. Porém, quando o dia da eleição chegar, a verdade é que provavelmente nem metade deles irá votar. Entre nós, o panorama é pior ainda: no dia 26, talvez somente um em três o faça. Porquê este desinteresse?

Há muitas razões para este elevado grau de abstenção. O que se passa no Parlamento Europeu é uma realidade opaca para a esmagadora maioria dos cidadãos. Não é de estranhar que muitos tenham a percepção de uma enorme distância face aqueles que se supõe dever representá-los. O facto da arquitetura institucional da União ser particularmente complexa só agrava o problema. As competências exclusivas do Parlamento, e a teia de relações deste com o Conselho e a Comissão, são matéria que só um punhado de técnicos e especialistas efetivamente domina. Este problema tem vindo a agravar-se com o passar dos anos. Se não se fizer nada, qualquer dia é a própria legitimidade do Parlamento Europeu que ficará em causa. Mas, afinal, porque é que os europeus não se sentem representados?

Claro que há sempre quem se sinta mais representado do que outros. Convém, portanto, focar a nossa atenção no cerne do problema: naqueles que, por uma razão ou outra, se sentem particularmente excluídos. 

Estou a pensar num grupo crescente de europeus de que quase nunca se fala. Falo daqueles que tendo nascido num país membro, residem hoje noutro país membro. Chamemos-lhes “europeus sem fronteiras”. Se juntarmos aqueles que atravessam uma fronteira todos os dias para ir trabalhar e os trabalhadores sazonais, estamos a falar de cerca de 20 milhões de pessoas – duas vezes a população do nosso país. Estes europeus são também aqueles que menos votam nas eleições europeias. Segundo o European Data Journalism Network (link: https://www.europeandatajournalism.eu/eng/News/Data-news/The-Europeans-left-out-of-the-European-elections) apenas 8% estão registados para votar no país de residência e ainda menos viajam de propósito para ir votar no seu país de origem. Eis a realidade de que pouco se fala: os europeus sem fronteiras são, de todos os europeus, aqueles que menos se sentem representados pelo Parlamento Europeu.

Não estamos perante um problema apenas, ou primordialmente, jurídico. Afinal de contas, estas pessoas não perdem o direito de voto nas europeias só por residirem ou trabalharem noutro país membro. Mas o facto de tantos votarem tão pouco indica que este é, antes de mais, um problema político.

Isto porque se trata de uma questão de representação. Quem fala hoje em nome destes vinte milhões de pessoas? E quem irá representá-los no futuro, quando o seu número for trinta ou quarenta milhões, consequência inevitável e previsível do processo de integração europeia?

Este é um dos grandes desafios que os diferentes partidos políticos europeus têm hoje pela frente. Como falar a europeus mais qualificados do que a média, com trajetórias de vida cosmopolitas, com carreiras profissionais e contributivas repartidas por diferentes países? Estes europeus sem fronteiras são, de certa forma, a realização da ideia de um demos europeu de que Habermas falava há trinta anos. Mas, com o passar dos anos, tornaram-se na prova provada de que, sem inovação institucional e golpe de asa político, os sonhos facilmente se transformam em pesadelos.

O populismo que agora enche tantas capas de jornal alimenta-se, em parte, do vazio de representação destes europeus. Esta falta de representação provoca um alheamento face aos problemas comuns que empobrece o debate democrático. E abre caminho a ressentimentos locais face ao Outro, um Outro que vindo de fora nos ameaça na nossa própria terra. Uma alternativa a esta forma de pensar passa por mostrar quão interdependentes realmente nós, europeus, nos tornámos. E que se há nisso um custo, há também vantagens. Mas quando são os mais europeus dos europeus quem menos se sente representado pelo Parlamento Europeu, parece fácil de ver que na origem deste problema está a própria União Europeia.

Com efeito, a representação política tradicional tem uma base territorial. O que é um círculo eleitoral senão a representação jurídica e gráfica da área geográfica onde vive o segmento do povo cujo voto legitima o respectivo representante? Sucede que quem estabeleceu a livre circulação dos cidadãos, não cuidou de pensar em como representar cidadãos sem uma circunscrição eleitoral de uma área geográfica determinada.

Uma solução seria flexibilizar o vínculo entre representação e território. Isto significaria, na prática, tornar a livre circulação de pessoas mais robusta associando-a à livre circulação da própria representação dessas pessoas. Isto permitiria que o direito de voto pudesse ser exercido com muito menos restrições do que atualmente. Com prazos mais dilatados e condições mais flexíveis, os europeus sem fronteiras poderiam fazer ouvir a sua voz com muito maior facilidade.

Isto poderia ser complementado por alargar a representação para além do mecanismo de voto. Organizações não-governamentais como a Oxfam não são sujeitas ao escrutínio eleitoral mas nem por isso deixam de falar em nome de milhões de pessoas afectadas pela fome e pobreza. Ou, entre nós, ninguém duvida que o GEOTA, que ninguém elegeu, tem feito mais pela preservação da natureza em Portugal do que muitos ministros do Ambiente. Representantes deste tipo, que se propõem a si próprios como representantes e que se sujeitam a mecanismos de controlo que não o voto, têm vindo a ganhar expressão nas últimas décadas: não há razão nenhuma para duvidar que poderiam desempenhar um papel importante em minorar a exclusão política dos europeus com maior mobilidade.

Existem limites que importa ter em atenção. Por exemplo, não estou certo de que a melhor forma de representar o conjunto dos europeus sem fronteiras seja por europeus sem fronteiras, a chamada representação descritiva. Tal como a melhor representação das mulheres não é necessariamente por mulheres mas por quem quer que melhor cuide dos interesses das mulheres, também aqui me parece errado pensarmos em soluções de (e para) europeus sem fronteiras. Antes, o importante é que sejam os partidos existentes a integrar os interesses deste grupo crescente de europeus na sua agenda. Até porque sendo eles o rosto de uma Europa sem fronteiras, pode ser deles o futuro.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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