Pode um criminoso ser um herói?

Demasiado humano para ser herói, é a Rui Pinto que devemos a torrente de revelações sobre o submundo do mundo do futebol. Pode um criminoso ser um herói? Sim, mas tal não o iliba de qualquer responsabilidade pelos atos cometidos.

Se confrontados com esta pergunta, muitos de nós responderia que não. Os fins não justificam os meios. Um roubo é um roubo, ainda que o fruto desse roubo seja depois oferecido.

O problema é que as nossas sociedades não são perfeitas. Numa sociedade perfeita, não haveria crime. Não haveria sequer a necessidade de cometer um crime para denunciar outro crime maior e mais grave. Nas sociedades em que vivemos, porém, há situações em que é necessário denunciar de forma a limitar os males injustificados provocados por certas políticas: por exemplo, o uso de tortura no contexto do combate ao terrorismo. Porquê? Porque simplesmente não há alternativa. A cultura institucional de muitas organizações exerce uma tal pressão sobre quem lá trabalha que a única forma de fazer chegar ao público a informação relevante é através do mecanismo da denúncia. A denúncia, apesar do clima de suspeição e quebra de confiança que acarreta, é moralmente aceitável quando o mal denunciado não tem justificação (tortura, corrupção, etc.) e a denúncia é a melhor solução. Muita tinta tem corrido nos últimos anos sobre se os atos de denúncia de indivíduos como Edward Snowden, Chelsea Manning e Julian Assange passam neste teste. Hoje em dia, todos eles se tornaram em figuras mediáticas de primeira ordem. Todos conhecemos os seus nomes e as suas histórias. “Snowden”, por exemplo, tornou-se sinónimo de heroísmo, ainda que um heroísmo entre a ilegalidade e o dever de consciência.

A extradição e detenção de Rui Pinto trouxe este debate até nós. Rui Pinto, a figura por detrás do site Football Leaks, tornou-se de um dia para o outro num dos denunciantes mais conhecidos no mundo. Em todos estes casos, os retratos veiculados pela comunicação social valem menos pelos factos que reproduzem do que pelo que nos dizem sobre a estrutura moral das nossas sociedades. A lei não é mais de que um instrumento de codificação e sistematização desta estrutura moral. Mas os “heróis” e os “vilões” vivem num mundo extralegal. Eles habitam no mundo das normas sociais. O mundo das nossas representações e expectativas sobre o que devemos fazer.

É aqui que reside, penso, o interesse do caso Rui Pinto. Ele personifica – com o seu inglês escorreito, penteado punk e patrocínio jurídico internacional – as contradições e limitações do “herói”.

Os heróis sacrificam o seu bem-estar pessoal, segurança individual e até a sua liberdade em nome do bem comum. Nós tendemos a glorificar a figura do herói. Como não o poderíamos fazer? Afinal, um herói é, por definição, uma personagem pura, impoluta, exemplar, virtuosa. É este Snowden-herói que aparece retratado no célebre documentário de Laura Poitras, Cidadão Snowden. Um herói em fuga, moralmente correto, fisicamente corajoso, disposto a colaborar com as forças do bem – uma rede cosmopolita de jornalistas intrépidos, dispostos a correr riscos e a enfrentar as autoridades dos seus países de origem para fazer chegar a verdade ao grande público. Forças do bem que incluem, claro está, a própria documentarista-ativista.

Por vezes, porém, o retrato é o oposto. Snowden, o “vilão”, junta-se aqui a Julian Assange, o acusado de abuso de mulheres, ou a Pinto, o pirata informático sem escrúpulos acusado de tentativa de extorsão. Nestes casos, a tónica é nos defeitos e nas falhas de carácter. A esta luz, Snowden, Assange e Pinto revelam-se humanos, demasiado humanos.

Isto porque um herói quer-se absolutamente impoluto. Qualquer mancha nessa imagem, que em qualquer de um de nós comuns mortais seria rapidamente desculpável, desfigura-o sem apelo nem agravo. Todos nós conhecemos exemplos deste tipo de julgamento moral. Pensemos nas críticas de direita ao mítico “Che”, que de herói romântico da revolução passa rapidamente a um comum sanguinário guerrilheiro. Ou, de forma inversa, nas críticas de esquerda à figura heróica do viajante intrépido, à luz das quais figuras como Cristóvão Colombo ou James Cook aparecem retratados como joguetes menores do imperialismo e do colonialismo.

Na realidade, todos nós somos capazes de atos de heroísmo. Muitos destes atos passam despercebidos. Um pai que salva um filho de uma situação embaraçosa potencialmente traumática, ou que o aconchega todas as noites ao deitar, é certamente um pai-herói. Ou o professor que faz um aluno passar a ver o mundo de forma diferente pode ser, em certa medida, visto como um herói intelectual. Como todos somos igualmente capazes de fazer coisas erradas, até hediondas. A capacidade de mentir, chantagear, enganar, ameaçar, ou simplesmente magoar o outro, são características que partilhamos com outras espécies dotadas de consciência mas que conseguimos, por mérito próprio, elevar a patamares desconhecidos de outra qualquer espécie sentiente à face da Terra.

Demasiado humano para ser herói, é a Rui Pinto que devemos, em todo o caso, a torrente de revelações sobre o submundo do mundo do futebol nacional e internacional. Pode um criminoso ser um herói?

Sim, um criminoso pode ser um herói porque alguém que comete um crime pode igualmente agir em prol do bem comum. Mas tal não o iliba de qualquer responsabilidade pelos atos cometidos. O criminoso não deixa de o ser só por ser também um herói. Os atos ou consequências “heróicos” dos seus crimes só devem servir de atenuante se se comprovar que não foram praticados de forma instrumental, mas, pelo contrário, correspondem a um padrão de conduta reiterado e efetivamente desinteressado.

Não sabemos como vai terminar o caso Rui Pinto. Se com o castigo merecido do vilão, se com a redenção do herói. Mas de uma coisa podemos estar certos. Uma sociedade precisa de heróis e vilões. Uns e outros personificam o compasso moral com que nos regemos. Talvez estejamos a ser demasiado exigentes com os nossos heróis. Talvez os devêssemos ver apenas como mais uns de nós. Mas, claro está, assim deixariam de ser os nossos heróis. E como podemos nós ser verdadeiramente humanos sem heróis, isto é, se não tivermos exemplos concretos que nos estimulem a reger a nossa conduta por padrões morais?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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