Viajamos sozinhos, nunca desacompanhados

A maior vitória de passear sozinho será sempre quando aprendermos a deixarmo-nos levar. Pelo melhor que o diferente tem para nos oferecer. Sem julgar.

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Humphrey Muleba/Unsplash

É Janeiro e as pessoas escondem-se atrás dos flocos de neve em catadupa que vão caindo em Vílnius, na Lituânia, o último país do Báltico para os aventureiros que começaram a travessia perto do Pólo Norte ou o primeiro para aqueles que vieram juntamente com o parcos raios de sol do Sul. A neve toma conta da paisagem e não deixa que nenhuma conversa ao ar livre comece sem expelir vapor, que rapidamente se difunde nas catedrais ortodoxas que se vão multiplicando na paisagem. As caras fecham-se a cada passo e o sorriso passa a ser a moeda mais cara de qualquer dos países que enfrenta temperaturas em que 0 graus já é calor.

Decidi dar um passo maior do que o 42 resvés que calço para perceber onde me enquadro. Não há uma medição exacta do sítio de onde somos. Cabemos em todos os milímetros do nosso mapa-múndi, mas sentimos sempre que há algo que não encaixa em nós. Procuramos sempre o que não nos dão. Na falta de sentimentos intrínsecos no que diz respeito à geografia, optei pelo clima para testar a minha companhia. A serenidade do Báltico aliada à história madrasta da Lituânia, Letónia e Estónia, contrastando com a minha impetuosidade e irrequietude. A mistura perfeita. Deparei-me com um charme que arrebitou cada um dos mais de 20 mil e muitos pêlos que se eriçaram mal perceberam o desafio. Que não está em viajar, mas em nos viajarmos.

“Louco” foi a palavra mais ecoada em todos os que se sujeitaram a ouvir o trajecto. O que pretendia era sempre partir de mim, mas comigo. Em lugares semi-recônditos, onde a conversa é parca, para conseguirem amealhar energia para a próxima vaga de frio e onde o franzir de sobrancelha é a frase mais longa que nos oferecem. Não exteriorizamos as reclamações, aprendemos que só podemos gritar connosco. Pegamos num café quente, enfiamos o gorro até aos olhos ficarem com borbotos e babamos o cachecol com os impropérios que vamos sussurrando para nós. Queremos conhecer tudo sem nos perdermos no cheiro a pastel de nata contrafeito que vem de um local onde só não servem estufados como sobremesa.

A maior vitória de passear sozinho será sempre quando aprendermos a deixarmo-nos levar. Pelo melhor que o diferente tem para nos oferecer. Sem julgar, aprendendo a cada “ne” ("não”, em letão) que ali não se dá dois beijinhos, explorando todos os museus que, além de história, nos oferecem calor e a ver a beleza no branco que cobre a natureza.

Há uma bússola interior que, por mais magnetismo que exista, insiste em não ter o Norte calibrado. Não há íman que a guie sem um oscilar constante dos ponteiros. Submergimos quando vemos a beleza de um campo branco, onde outrora houve verde. Contemplamos o que nos falta, percebemos que partilhar com a vozinha que nos vai gritando dentro da cabeça não tem nada de mal. Não podemos viver dependentes da disponibilidade de outrem, se o que queremos é ir.

No momento de partir para lugar algum sozinho, questionamos tudo o que o nosso léxico permitir. As nossas vontades têm mais vogais do que consoantes e variam consoante os carris do Transiberiano. Decidimos partir connosco, certos das incertezas da rota, mas confiantes que as desconfianças se esfumarão. Por mais que seja um processo, é sempre essa a alavanca que necessitamos antes de avançar sem medos. Há medos, haverá sempre, resta adorná-los com a forma pacífica que conseguirmos arranjar para passarmos a ser o nosso braço direito. Ou os dois. Foi assim a minha travessia no Báltico, com a vontade de conhecer o quase diametralmente diferente, com horas de passeio sem pessoas nas ruas e conversas intermináveis comigo sobre quão escassos foram os períodos em que as pessoas nestes países puderam, efectivamente, desfrutar da liberdade da independência e a sorte que nós temos.

Por mais que nos forcemos a colocar o selo da solidão antes de procurarmos o destinatário, é importante percebermos que não há nada melhor do que ir connosco, bem acompanhados de nós e seguros de que todos os passos serão de conhecimento. Do mais puro que há. Viajamos sós, mas nunca desacompanhados — e há lá coisa melhor do que nos contentarmos com a nossa companhia?

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