Argélia: um pouco de História não faz mal a ninguém

O regime autoritário não foi uma fatalidade, foi imposto pela força contra a maioria dos chefes históricos.

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Muitos argelinos esperam que a demissão de Bouteflika signifique o atestado de óbito do “sistema” que governa o país desde a independência, em 1962. É uma expectativa optimista mas justificada. “Historicamente, Abdelaziz Bouteflika sempre esteve presente nos episódios em que o poder civil teve de ceder o terreno ao poder militar”, escreve o seu biógrafo Mohamed Benchicou. O regime de partido único (até 1989) e a supremacia do poder militar sobre o civil não foram uma fatalidade da guerra de independência. Foram impostas pela força e contra a maioria dos líderes históricos.

Comecemos por uma nota biográfica. Bouteflika nasceu em 1937, na cidade marroquina de Oudja, para onde os pais tinham emigrado. O local de nascimento determinará a sua vida. Aos 19 anos, no fim do ensino secundário, inscreve-se na Frente de Libertação Nacional (FLN). Aí conhece o coronel Houari Boumédiène, que comandava as “forças do exterior” do Exército de Libertação Nacional (ALN), em Marrocos e na Tunísia. Torna-se no seu homem de confiança. Passa a integrar o “clã de Oudja” que, em breve, conquistará o poder.

A sua primeira grande missão será ir a França, em Dezembro de 1961, visitar os chefes da FLN detidos no Château Aulnoy. Boumédiène tinha força militar mas não tinha estatura política. Precisava da aliança com um líder histórico. Apostava em Mohamed Boudiaf. O emissário, depois de algumas conversas, aconselhou a aliança com Ahmed Ben Bella, que tinha força política mas não tinha apoios militares à medida da sua ambição. Bormédiène concordou. Esta aliança mudará a História da Argélia. Bouteflika (na foto, no funeral de Boumédiène) tinha então 24 anos.

O político e o militar

A guerra da independência, com mais de 200 mil mortos, começou com a vaga de atentados do 1º de Novembro de 1954. Em 1956, a FLN e o ALN estavam num estado de debilidade e anarquia. Os dois dirigentes da FLN em Argel, Ramdane Abane e Larbi Ben M’hidi, convocaram os chefes militares do interior e um delegado do exterior para o Congresso de Soummam, numa aldeia da Cabília, em Agosto de 1956. Dele saíram um Comité de Coordenação e Execução (CCE, com os dirigentes do interior) e um Conselho Nacional da Revolução Argelina (CNRA), com líderes do interior e do exterior.

O congresso aprovou dois princípios fundamentais. Primeiro, a primazia do político sobre o militar. Segundo, a primazia do interior sobre o exterior. “O partido comanda a espingarda”. A direcção estratégica estaria no interior e ao exterior caberia municiar a guerrilha e conduzir a campanha diplomática.

Soummam unificará a acção militar, com um plano global. Por outro lado, Abane e Ben M’hidi vão lançar a “batalha de Argel”, com uma escalada de acções terroristas, primeiro contra alvos político-militares e, depois, também civis. Qual era a sua estratégia?

Explicou Abane em fins de 1956 : “Os irmãos sabem que a nossa inferioridade frente ao exército colonial, em número e material, não nos permite obter grandes e decisivas vitórias militares”. A CCE lançou a “batalha de Argel” não para conquistar o controlo da cidade mas “para ganhar a batalha de Nova Iorque, o combate na Assembleia-Geral das Nações Unidas”, resumiu o historiador americano Matthew Connelly.

Num estudo clássico (A Diplomatic Revolution: Algeria's Fight for Independence), Connelly explica a derrota da França, apesar de ter vencido no plano militar: a FLN ganhou no plano diplomático e mediático. Esta “grande estratégia” foi elaborada ainda antes da fundação da FLN e da luta armada pelo jovem Hocine Ait Ahmed. Os argelinos conseguiram isolar a França e fazer-lhe pagar um preço político-diplomático insuportável. Enfim, será a guerra da Argélia a fazer cair a IV República e a colocar De Gaulle no poder.

Que ficou da “batalha de Argel”? Houve o terrorismo e as vítimas civis. Mas prevaleceu outra imagem: a da repressão, que uniu a população contra os franceses, e sobretudo a “mancha da tortura, que provocou a denúncia internacional dos pára-quedistas dos generais Massu e Bigeard, dilacerando também a opinião pública francesa.

Ben M’Hidi será preso e enforcado em Março de 1957. Abane será estrangulado na Tunísia, em Dezembro de 1957, por ordem de Abdelhafid Boussouf, seu colega na CCE e membro do “clã de Oudja”, com a cumplicidade de outros dirigentes. Os princípios de Soummam serão enterrados.

A conquista de Argel

A Argélia torna-se independente no dia 5 de Julho de 1962. Estalara já a luta pelo poder. O Governo Provisório da República Argelina (GPRA), então presidido por Ben Khedda, vai ser afastado do poder pela aliança Ben-Bella-Boumédiène. O “exército do exterior”, rebaptizado Exército Nacional Popular (ANP), dispõe de 35 mil homens bem treinados, com blindados e armas pesadas. “Semeando cadáveres pela sua estrada, Boumédiène procedia à conquista da Argélia”, escreverá mais tarde Ferhat Abbas, antigo presidente do GPRA.

Foi uma guerra civil dentro da FLN – com violentos combates e milhares de mortos – entre o “exército do exterior” e os combatentes do ALN. Há confrontos sangrentos no próprio Casbah de Argel. Boumédiène é acusado de nunca ter ter utilizado as suas armas pesadas contra os franceses mas de as usar contra os combatentes do interior. A população da capital manifesta-se gritando : “Sete anos basta!” E manifesta-se também pelo poder dos civis.

Ben Bella autoproclama-se “director da revolução” e anuncia a institucionalização do partido único, contra a opinião da maioria do GPRA e contra “chefes históricos” como Boudiaf, Ait Ahmed, Ben Khedda ou Krim Belkacem. E contra a memória de Abane ou Ben M’hidi.

No dia 9 de Setembro, as tropas de Boumédiène entram em Argel. A conquista está consumada. Ben Bella será Presidente. O coronel será o seu vice, com a Defesa e os serviços secretos. Bouteflika entra no governo e, um ano depois, será ministro dos Negócios Estrangeiros.

Em 1965, Ben Bella afasta dois ministros do “clã de Oudja” e decide demitir um terceiro, Bouteflika. Boumédiène responde com o golpe de estado de 19 de Junho de 1965. O círculo autoritário está fechado.

Bouteflika é o último elo da cadeia. Há hoje, finalmente, um corte de gerações. Mas o “sistema” tem raízes de meio século. Os vencedores de 1962 criaram aquela Argélia que os manifestantes das sextas-feiras querem agora demolir. Olhando a História, será um trabalho de Hércules.

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