Na noite de André Romão há corpos que pulsam e despertam

Fauna é a mais ambiciosa exposição de André Romão. O artista reconsidera a relação entre os objectos e os seres vivos, a acção humana e a natureza. Solicitando ao espectador que se abra às ficções da arte e suspenda a razão da lógica, a fim de imaginar e pensar as metamorfoses e as mutações do mundo. Até 2 de Junho, no Museu Berardo.

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miguel manso

Passaram dez anos desde que André Romão (Lisboa, 1984), numa entrevista ao Ípsilon, proferiu a seguinte reflexão: “O meu trabalho vive de tensões. Não me interessam trabalhos clarividentes. A arte é uma área de pensamento, de especulação, de alargamento de significados e sensibilidades. Uma forma de expansão intelectual e emocional”. Quem visitar Fauna, no Museu Berardo, encontrará correspondências com estas ideias e com as linhas de trabalho que lhe estão subjacentes. Encontrará também elementos que regressam ou se repetem: a influência de contextos extra-artísticos, uma atitude relacional com os objectos, a presença escultórica da palavra. Mas, também, novidades, pequenas modulações no fazer do artista. Descobri-las, implica entrar nesta exposição que, composta de trabalhos inéditos, reúne seres vivos, objectos, imagens e poesia.

 À entrada, o efeito da penumbra que se abate sobre as paredes brancas, escurecendo-as, provoca uma sensação de torpor. No chão, encontra-se um gerador mudo no qual alguém introduziu um pó amarelecido. E, mais à frente, vê-se uma estrutura de plexiglas sobre a qual um foco de luz se vai apagando. A estranheza, o cariz inusitado destas aparições desestabiliza a percepção e a compreensão. Procuram-se, na memória, referências, modelos, algo que estabilize a relação com as peças. Por exemplo, a estrutura tem uma clara forma arquitectónica. “É uma representação esquemática de uma fábrica, com o desenho clássico dos telhados”, acorre o artista. “Vemos o sol a pôr-se sobre a modernidade. Assinala o fim uma certa era, de um modo de conceber a produtividade do corpo, a relação do homem com o mundo, com os agentes naturais. A fábrica representou um certo paradigma da acção humana que está a desaparecer. O sol já se pôs nesta fábrica. Resta saber que monstros permanecem nas suas sombras ou que monstros novos surgirão do seu vazio.”

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O visitante depara-se com uma violência orgânica, visceral: mutações, transformações, cortes, pulsões miguel manso

À noite todos os gatos são pardos

O facto de André Romão colocar estas questões reenvia-nos, outra vez, para a conversa de 2010, realizada a propósito da individual O Inverno do (nosso) descontentamento, na Kunshalle Lissabon. Nessa ocasião, o artista concebia a política como algo abrangente, no seu sentido mais original. Inextricável de uma relação com a polis, com a cidade, com o mundo, com os outros. Tal entendimento volta a manifestar-se em Fauna (bem como em Flora, exposição patente no Museu da Imagem em Braga, até 30 de Abril no âmbito da BoCA 2019), ainda que de modo menos evidente, mais poético. “Esse pôr-do-sol dá o tom à exposição”, considera. “Torna-a uma viagem nocturna em que uma série de regras sobre o pensamento lógico se suspendem numa noite de insónia, entre o sono e o sonho. Em que o estatuto dos objectos explode, se suspende. Queria que a exposição fosse muito livre nas suas associações. Durante a noite, as coisas ficam mais informes. Afinal, à noite todos os gatos são pardos”

Para que tal liberdade se pudesse manifestar, André Romão convocou universos em que o humano não fosse demasiado central. Outros agentes ou entidades, como plantas consideradas invasoras de ecossistemas ou máquinas. “Quis expandir a relação entre os corpos, entre as entidades no mundo. Suspender as relações unívocas que o pensamento centrado no racional, no humano nos continua a ditar. Abranger toda uma série de coisas e seres que se misturam, se confluem. E isso, no fim, tem a ver com a desregulação que a própria acção humana continua a instigar no mundo”, conclui.

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Esta desregulação permite ao artista imaginar, ficcionar seres híbridos, interacções (que já foram mais) impossíveis, proximidades improváveis. Inventar uma fauna ainda por classificar, especular, em termos artísticos, sobre o mundo e o futuro. “Daí a presença do gerador eléctrico. Foi polinizado com pólen de uma acácia. É como se estivesse já fecundado, depois uma relação amorosa com as flores da árvore”, comenta. “Dos resquícios desse acto, poderia nascer um ser híbrido”. Mas porquê o gerador? “Gosto da palavra. Significa aquilo gera, algo que transforma uma substância em energia. Apeteceu-me suspender a máquina como produto racional, produtivo. Invadi-la com pólen. Considero que há um impulso vitalista a atravessar a exposição com a presença de vários seres vivos e processos orgânicos. Entramos num terreno de surrealização das relações do humano com o mundo, suspendemos certas lógicas. E as relações ganham outra fluidez, num aparato surreal que permite novas interações e convivências”. A presença da máquina permanece, todavia, teimosamente deslocada, na sua monotonia negra e artificial. “Há uma coisa cada vez mais importante no meu trabalho que é a fisicalidade das coisas. Quis salientar, no modo como o pólen foi introduzido no motor, a ideia de penetração, de um acto sexual. Uma imagem ou um documento não me davam essa efectividade”.

Tornar visível a pulsão do corpo

Em Fauna, o visitante depara-se com uma violência orgânica, quase visceral. A de mutações, transformações, cortes, pulsões. Numa coluna, vemos cartazes que anunciam a exposição (a tipologia do cartaz também foi utilizada pelo artista na Kunsthalle Lissabon, em 2009) com a imagem um detalhe sangrento do Altar de São João, do pintor flamengo Rogier van der Weyden, de 1455: decepado, o torso do São Baptista expulsa sangue. “É a imagem que nos leva para o interior da exposição. Queria tornar visível esta pulsão forte do corpo, os seus sistemas de circulação internos. Só através de uma mudança abrupta e violenta, de um certo acontecimento, ela se torna visível. Não me interessa o episódio retratado, o universo religioso, mas o corpo que faz expulsar o seu sangue. Que está vivo, a pulsar até ao fim. Sim, é verdade, após sofrer violência, mas é ela que torna as coisas mais visíveis, mais presentes, menos abstractas”.

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A importância da fisicalidade do corpo é evidente na instalação sonora Of bodies changed to other forms I tell, realizada com a colaboração de duas figuras do punk inglês, Penny Rimbaud e Eve Libertine, dos Crass (referência central no imaginário do artista). Cada lê um texto composto por André Romão a partir de fragmentos das Metamorfoses de Ovídio. “Estão a ler, na versão inglesa, a história do Aqueloo, ser mitológico que tinha o dom da metamorfose, nunca era apanhado e dominado”, revela André Romão. “Não sei se me identifico com a criatura, pela sua resistência, se a receio, pois infiltra-se, cresce e triunfa pela sua capacidade adaptativa. Há algo de dúbio nela”. Na obra de Ovídio, Aqueloo é dominado, não na história reescrita pelo artista que os dois músicos interpretam. Eve Libertine, sibilando como uma serpente, acentuando a presença da língua, enquanto Penny Rimbaud corporizando, com o tórax, numa pulsão vital, as palavras do texto.

Na sala seguinte, é como se Aqueloo se materializasse numa planta, num ser vivo ou antes numa obra de arte. Trata-se de outra espécie de planta invasora, a Ricinus communis, conhecida como a “figueira-do-Inferno”. Colocada de pernas para o ar, parece escorregar na direcção do chão. “Decidi antropomorfizá-la. Deixei apenas os troncos, as sementes, os ramos e tirei as folhas. Parece ter ossos e caracteres sexuais. E ao seu lado”, aponta o artista “vemos uma sombra de algo a pairar lá em cima”. É a de uma maqueta do satélite português PoSAT-1, emprestada pela Faculdade de Ciências de Universidade de Lisboa. “Interessava-me esta figura que subia. Por um lado, tem a ver com um certo escapismo: quando desregulas o mundo, olhas para o espaço. Por outro lado, representa a vontade de controlar os movimentos da terra e de fazer o mapeamento científico do mundo. É uma entidade que paira estranha, ameaçadora sobre nós como uma sombra ao mesmo tempo que estabelece uma relação tensa com a árvore”.

Fazer o impossível possível

Fauna prossegue depois pela noite dentro, antes de uma paragem numa sala que quebra a linearidade do percurso. À esquerda, ao fundo, um frigorifico projecta uma luz doente sobre o chão. No seu interior, descobrem-se várias estatuetas antigas, algumas funerárias e de várias origens e períodos históricos. Foram doadas pela artista Ana Hatherly ao Museu Nacional Arqueologia e aparecem ali, como se imobilizados a aguardar uma qualquer activação ou transformação. São precisamente estes processos que encontramos representados no conjunto seguinte de obras. Num palco, que cita o teatro noh japonês, apresentam-se várias entidades híbridas surpreendidas em mutações: a escultura de uma cabeça no interior da qual um mineral se cristaliza, uma figura que coberta de mexilhões se transformou numa armadura, uma orelha que cresce no coral, a folha de uma planta em que a sombra cria dentes. A velar ou a organizar a interacção muda entre estes seres, a reger, de cima, este teatro, encontra-se Noite, uma escultura geométrica em madeira que remete, pelo seu desenho limpo e asséptico, para a modernidade. A tensão que se presenciara noutros momentos retorna, como se algo estivess prestes a estalar ou mover-se: um novo mundo criado e recriado pelo Homem?

Para André, o contraste entre as peças só é significativo pelas relações que vai abrindo, que – afinal, estamos no domínio da arte - não são estáveis ou unívocas. Não produzem teses, teorias ou visões do mundo. Mais interessado em abordagens etéreas e subtis, e não em discursivas ou retóricas, André Romão procurou, em Fauna, “fazer o impossível possível, tornar o surpreendente relevante, re-sensibilizar as consciências.” Para tal, lembra, por exemplo, não classificou as plantas como peças. “Foram convidadas em nome próprio. Agradou-me o convidar de coisas, de agentes que vêm falar à exposição. Houve a intenção de partilhar, de dividir, como se pudessem ter uma vida menos condicional, continuarem em mutação. Não serem totalmente estéreis. Quis que um bocado de vida invadisse muitas destas peças, que vão pontuando a exposição e habitando os seus interiores mais remotos”. Esta é uma experiência, entre outras, que o visitante, também ele, põe em movimento. Ao descobrir dentro de uma caixa de cartão um ambiente marinho recriado pelo arista ou quando, diante de Sunrise, o vídeo que encerra a exposição, contempla um mundo que parece despertar antes de ser engolido pela luz.

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