André Romão: à procura do humano na história e na arte

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Para André Romão, vencedor em 2007 do Prémio EDP Novos Artistas, a arte é uma área de pensamento que não enjeita convocar a palavra, a cultura de massas, a história e a literatura. E que liberta tensões. Como as que atravessam "O Inverno do (nosso) descontentamento"

Um cartaz que reproduz a capa de um livro. Uma estátua que tombou. A imagem de um músico punk projectada na parede. Um plinto vazio. Da mais recente exposição no Kunsthalle Lissabon não sobram grandes efeitos ou objectos "autoritários". As coisas estão lá, simplesmente, como a leitura de um texto que vai acontecer todos os sábados, às 16 horas no dito espaço. Uma atenção mais descansada, porém, permite descobrir ideias, energias, histórias que se acumulam, se confundem, se sobrepõem; ou frases que regressam como o próprio título, "O Inverno do (nosso) descontentamento".

André Romão (Lisboa, 1984) é quem coloca tais relações em "palco", num convocar de referências que procedem não apenas da história da arte, mas da história da cultura na sua acepção mais ampla. Voltemos ao título da primeira individual deste artista: nele está inscrito ao mesmo tempo uma citação de "Ricardo III", de Shakespeare ("ò inverno do nosso descontentamento, convertido agora em glorioso verão...") e uma expressão "inventada" a partir dessa citação para descrever o período de conturbação social que a Inglaterra viveu nos anos 70 do século passado.

Desde 2007 (quando venceu o Prémio EDP Novos Artistas) que André Romão justapõe momentos e episódios da história da literatura e da cultura. Para pensar a memória, o visível, o acontecimento ou a activação da escultura, sempre numa dialéctica entre a ética e estética. "O Inverno do (nosso) descontentamento" surge no seguimento de projectos apresentados em 2009 ("Nada dura para sempre", na Galeria Pedro Cera, Lisboa, e "Tudo dura para sempre", no Pavilhão Branco, Museu da Cidade, Lisboa) e prossegue (encerra?) um "ciclo" sobre a natureza trans-histórica e trans-temporal do humano; uma natureza onde cabem, por exemplo, o teatro do dramaturgo polaco Jerzy Grotowski, o punk dos Crass, a escrita de Shakespare ou um plinto coberto de linho.

"Interessa-me pensar a história não como uma sucessão de acontecimentos, mas como um momento vertical em que tudo pode coincidir no mesmo espaço; não há passado apenas presente", diz o artista. "Como se fosse um nivelamento vertical do friso cronológico, como se tudo pudesse ser colocado no mesmo parâmetro, e num espaço expositivo diversas referências e tempos fossem niveladas com a mesma validade". E pode esse gesto estender-se à história da arte? "Sim", responde. "Basta pensarmos no Classicismo, no Românico, no Renascimento, nas suas recorrências e reinterpretações, as coisas nunca se perdem, permanecem. Porque se calhar são não históricas, são humanas".

Poético e político

É com este entendimento que se contextualiza o estudo que André dedica às literaturas clássica e moderna ou à história da cultura, de Ésquilo a Bertold Brecht (autores evocados em "Tudo dura para sempre"), passando pelo poeta alemão Hölderlin. Todavia, a busca do humano na intemporalidade dos conceitos que o determinam (a memória, a utopia, a palavra) aproximam a obra de André Romão de uma categoria relativamente incómoda: o "político". Leitura exagerada, injusta? "Não tenho nenhum problema em perceber o meu trabalho como político, mas é uma palavra que adquiriu e continua a adquirir conotações que me incomodam". Então, em vez de subscrever "ideologias" ou programas, sugere outra citação, agora do artista belga Francis Alys "'Sometimes doing something poetic can become political and sometimes doing something political can become poetic'. Creio muito neste entendimento da política, como algo abrangente, no seu sentido mais primário; de como se regem as coisas na polis, na cidade, de como nos relacionamos com o mundo, os outros; não como acção política.".

Voltemos à exposição no Kunsthale Lissabon. Na escultura tombada - da autoria de Leopoldo de Almeida (1948) e que representa o navegador Nicolau Coelho - coincidem o momento real e o momento simbólico do derrube de uma estátua. No título sobrepõem-se a narrativa com a historiografia, a ficção com a realidade, movimento acentuado com presença quase espectral de Steve Ignorant, vocalista dos Crass - lembramos que esta contestatária banda punk inglesa foi um produto dos difíceis anos 70 da Inglaterra. Existem, portanto, narrativas silenciosas por trás das obras. Para André, no entanto, a compreensão do objecto artístico não fica dependente do conhecimento absoluto desses textos: como escreve na entrevista a João Mourão e Luís Silva, disponível na folha de sala da exposição: "(...) uma estátua derrubada contém em si o acto de a derrubar, uma imagem fixa estabelece a espera de um acontecimento, um plinto vazio, a ausência de visibilidade". Assim, antes de representar uma figura, a estátua representa uma escultura enquanto o plinto vazio representa uma metáfora possível da invisibilidade e a leitura do texto (um excerto de "Para um Teatro Pobre, de Jerzy Grotowski), anunciada no cartaz e para lá do seu conteúdo específico, pode tão-somente revelar a presença escultórica da palavra.

Proximidades

Esta dimensão demonstrativa, quase literal, da prática de André Romão que "activa" a escultura com performances ou acontecimentos, remonta a trabalhos como "Reunião" ou "Campo de'Fiori (Parte II - Monumento à Unificação)", ambos de 2007, e harmoniza-se com uma das características mais perceptíveis na sua obra: a secura. Há um pudor em ser visual, uma resistência ao artifício, "ilustrada" aliás no uso do linho sobre o plinto e na menção ao Teatro Pobre de Grotowski (que centrava o seu programa relação entre o corpo do actor e a plateia). Tempo então para uma pequena provocação: podemos comparar semelhante sensibilidade com a de alguns artistas dos anos 80 portugueses, como Rui Chafes e Pedro Cabrita Reis?

"Talvez, mas há uma diferença substancial. A minha prática é mais relacional, tem a ver com projectos de pesquisa. Não há uma tirania do gesto artístico. Não que este tenha desaparecido, mas há uma maior contenção das liberdade poéticas. Uma maior ligação ao chão, à realidade, um maior enraizamento no mundo, numa atitude mais relacional do que introspectiva". E proximidades? "Existem, sem dúvidas, em termos de uma depuração, de um certo silencio".

Fundadoras são as influências de Bruce Nauman e Joseph Beuys - "em particular, o seu trabalho com a percepção e a ficção da História" - e a respiração, talvez menos óbvia, da cultura punk. "Foi de certa forma a primeira arte conceptual com que me deparei, sobretudo o punk inglês. A minha simplicidade de meios pode vir daí. Os Crass ou Subhumans não eram grandes músicos, não tinham instrumentos fantásticos. Encaravam o fazer de forma casta, precária, com os meios que tinham à disposição - foi assim que comecei a trabalhar - e isso aproxima-os de certas correntes de arte conceptual".

Terá sido esta vontade de fazer com recursos pequenos que motivou André Romão, ainda estudante do Curso de Design de Comunicação na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, a organizar exposições colectivas com um grupo de colegas onde se incluíam Ana Baliza, Ana Manso, Gonçalo Sena, Joana Escoval, Margarida Mendes, Mariana Silva, Nuno da Luz e Pedro Neves Marques. Trata-se aliás de uma colaboração que não encerrou e que teve no ano passado, no âmbito de um trabalho colectivo de comissariado, o seu momento mais alto com a organização do ciclo de exposições "Estados-Gerais" na Galeria Arte Contempo.

Quanto ao percurso individual de André Romão, para este ano estão previstas, por ordem cronológica, exposições na Arco, em Madrid, na Kunstlerhaus Bethanien, em Berlim, onde é bolseiro, na Fundação EDP (com Pedro Neves Marques) e na Galeria Banginski. A obra vai, certamente, permanecer inquiridora, inquieta entre suportes (escultura, vídeo, desenho, instalação) e referências (alta ou baixa cultura): "O meu trabalho vive de tensões. Não me interessam trabalhos clarividentes. A arte é uma área de pensamento, de especulação, de alargamento de significados e sensibilidades. Uma forma de expansão intelectual e emocional".

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