Uma diletância nómada e a descoberta do documentário que humaniza Miles Davis

Um documentário descoberto em viagem veio juntar-se a um romance sobre os que vivem na margem.

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Miles Davis Luciano Viti/Getty Images

Está frio mas vai fazendo sol. Dois rapazes atrevem-se a levar os negronis para a esplanada, mas não tardam a retirar-se. As nuvens já fazem sombra nos telhados, uma mulher atravessa rua refugiando-se na gola do casaco comprido. Olho os que passam de bicicleta, silenciosos, protegida pelo vidro da cafeteria do museu de cinema, o Film Museum. Está cheia, animada por conversas que não entendo e que imagino serem acerca de filmes, claro, talvez o documentário de Renzo Piano — em alemão Arkitekt Des Lichts — de Carlos Saura, que se anuncia na bilheteira.

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O lugar é uma benção nas ruas quase desertas do centro de Munique ao início da tarde. Uma benção pelo ambiente e por saber que posso ver um filme sem dobragem, finalmente. Coisa rara, na Alemanha, só possível numa casa especial, em frente ao Museu do Judaísmo, numas antigas cavalariças bem perto de Mariannenplatz. Lembro-me que estou na cidade de Fassbinder e de Wim Wenders. Inaugurado em 1963, destacou-se ao restauro de obras de Fritz Lang, Lubitsch ou Murnau, e tem uma colecção notável de filmes históricos. Ali, os filmes dão exibidos na versão original, na língua original, por quatro euros. Um luxo. A 26 de Março, às 18h30, passou The Loneliness of the Long Distance Runner, de Tony Richardson, às 21h houve Hagazussa e Richardson voltaria nos dias seguintes, sem que nunca se repita um filme.

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O museu surgiu de surpresa no meu caminho e fez-me dar descanso ao livro que tinha em mãos. Chama-se Lost Children Archive e é o romance de estreia da mexicana Valeria Luiselli. Com ele, a escritora de apenas 35 anos passou de desconhecida a um dos nomes mais reverenciados da nova literatura latino-americana. Desde a publicação do romance, em língua inglesa, no início deste ano, Luiselli, actualmente a viver nos Estados Unidos, tem tido destaque em toda a imprensa literária na América e no Reino Unido. É uma obra na fronteira entre real e ficção, sobre uma mulher, mãe de dois filhos, infeliz no casamento, a viver na Cidade do México e com um interesse muito particular no poeta Gilberto Owen, uma das vozes mais conceituadas do Harlem da década de trinta do século passado. A narradora é essa mulher sem nome, com uma identidade que se confunde com a da autora, e através da qual Luiselli constrói uma narrativa poderosa sobre a crise de migração. Quem sabe não chega a edição portuguesa?

É um livro para ler nos intervalos do resto, o que se impõe. Chego depois a uma entrevista a Ricky Gervais na revista de domingo do New York Times, e, quando as luzes do avião se apagam descubro um documentário apresentado em janeiro passado no Festival de Sundance, no Utah. Podia ser só mais uma história de Miles Davis, o músico de jazz afro-americano nascido em 1926, no Illinois, que sonhou ir para Nova Iorque e conheceu, adolescente, Charlie Parker e Dizzy Gillespie, e depois namorou Juliette Gréco. Mas Miles Davis The Birth of A Cool, de Stanley Nelson, o mesmo de The Black Panthers: Vanguard of the Revolution, rompe o misticismo, quer fugir da lenda a que o trompetista parece condenado e vai atrás do que menos se sabe: as relações pessoais, os demónios, as inspirações, a vida, a tragédia. Era um génio, que criou uma persona pública. Nelson apostou em quebrá-la para nosso deleite — pelo menos dos que gostam de Davis, como de Coltrane. É uma produção da PBS com estreia marcada para o Verão. Está quase.

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