Que fazer com este país?

Portugal tem condições suficientemente interessantes — geográficas, linguísticas, culturais e societais — para desejar ser não apenas uma sociedade em convergência com a média europeia.

António Ribeiro Sanches, que deixámos na última crónica em 1759 escrevendo sobre Portugal as suas Cartas sobre a educação da mocidade, deixou implícito que o problema do país se resume essencialmente a um dilema: mão-de-obra barata ou valor acrescentado? Como vimos, a sua crítica precoce (para termos portugueses) à escravatura baseava-se desde logo só no facto de esta ser imoral — ou, nos seus termos, uma desumanidade — mas também incluía na sua análise as consequências de um modelo económico baseado na escravatura para o subdesenvolvimento cultural e social de Portugal. Enquanto as elites nacionais, no reino ou nas colónias, extraíam recursos humanos de África para que estes atravessando o Atlântico fossem extrair recursos naturais do Brasil, outros povos europeus manufacturavam os produtos mais complexos, mais intensivos em conhecimento e tecnologia, que o ouro luso-brasileiro ia depois comprar. No curto prazo os portugueses ficavam mais ricos; a longo prazo ficavam mais pobres, porque não tinham sentido necessidade de se educar para produzir com mais valor acrescentado.

Como descrevi então, esta tese atravessou os séculos — de Garrett a Passos Manuel, de Antero de Quental a António Sérgio — e de certa forma ela é relevante ainda hoje. Aludi na crónica anterior à forma como a crise de 2008 foi enquadrada em Portugal como uma luta entre duas desvalorizações. Uma, a desvalorização interna, consistia em competir com o resto da Europa e do mundo através dos salários mais baixos, simulando através deste mecanismo a antiga desvalorização do escudo que com o euro já não é possível fazer. A segunda era a desvalorização externa, que consistia em romper com o euro para poder desvalorizar o novo escudo, nunca se explicando bem que isso consistiria também num corte de salário. Ora, uma desvalorização — interna ou externa — é sempre um atalho. Fora de um momento de crise, um atalho não é um caminho de futuro para o país. E navegar à vista, fazendo um bocadinho de cada coisa, também o não é.

Um caminho de futuro só pode passar pelo contrário da desvalorização — de qualquer desvalorização, seja a da austeridade, seja a do rompimento com o projeto europeu — e projetar a médio-prazo aquilo a que poderíamos chamar uma “Grande Valorização”. Há anos que defendo que essa grande valorização deveria passar por três eixos fundamentais — valorização das pessoas, do território e do conhecimento — e mais recentemente tenho defendido que ela seja precedida de um grande debate nacional que nos permita encontrar em conjunto as metas em cada um desses eixos. As medidas e as políticas específicas fariam parte, como é natural é desejável que seja, do terreno contencioso da política, em que cada partido ou cidadão escolheria as propostas e programas a defender. Essa pluralidade essencial não sai prejudicada, pelo contrário, pela existência de objetivos comuns. Foi assim que fizemos a primeira geração de políticas após o 25 de Abril, e foi assim que muitos países — da Irlanda à Finlândia — se têm conseguido modernizar.

Uma valorização das pessoas, do conhecimento e do território passa certamente pela realização de verdadeiras reformas. Não as reformas erradamente “estruturais” das falhadas políticas a curto prazo da desvalorização interna. Mas o tipo de reformas que permitam sustentadamente aumentar produtividade e fazer o país subir na escala de valor europeia e mundial. Essenciais seriam uma reforma do ensino superior, uma reforma da administração pública e a regionalização. Sim, eu sei que a última é politicamente uma batata quente, mas olhemos para um mapa com as regiões mais pobres e mais ricas da Europa e rapidamente veremos como se tornaram mais prósperas as regiões espanholas, de que a Galiza é uma ilustração, e como o Norte de Portugal ficou comparativamente mais distante destas. Uma valorização das pessoas passaria necessariamente por políticas de micro-economia, ajudando as empresas a incorporarem conhecimento e tecnologia na sua produção, e por um reforço das provisões de bens públicos por parte do estado, para não deixar ninguém para trás enquanto o país se tornasse mais produtivo e especializado. E um plano deste género não poderia passar por um rompimento com a Europa, mas antes pelo contrário por uma maior europeização da nossa economia e sociedade, sendo o estado um ajudante da sociedade civil e dos agentes económicos na captação de recursos europeus de uma forma mais simples, eficaz, e inclusiva do que se passa hoje.

No quadro desse debate nacional haveria talvez uma questão que apareceria mais tarde ou mais cedo. Essa questão é a da convergência com a média europeia — o Santo Graal das nossas políticas das décadas anteriores. Será preciso refletir sobre se não é preciso ser bastante mais ambicioso do que apenas a convergência. Ou, em metáfora futebolística, se devemos continuar a jogar para o empate, maneira mais do que consabida de acabar a perder. Portugal tem condições suficientemente interessantes — geográficas, linguísticas, culturais e societais — para desejar ser não apenas uma sociedade em convergência com a média europeia, mas antes uma das sociedades mais desenvolvidas, cultas e iguais de uma das regiões mais desenvolvidas do mundo. Talvez precisemos de atualizar o nosso desafio como sociedade se queremos ir mais longe sem deixar ninguém para trás.

E é aí que o regresso a Ribeiro Sanches faz sentido. O Portugal do ciclo imperial foi um país que gastou todas as cartas sem conseguir dar um pulo de desenvolvimento. O Portugal do ciclo atual só pode contar consigo, com as suas gentes e com os que aqui quiserem viver e trabalhar, e com o seu território inserido no espaço político europeu. Terá chegado finalmente a altura de entender que só chegaremos “lá” com uma Grande Valorização daquilo que agora temos?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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