Menos Passos Coelho, mais Passos Manuel

Aqueles que defendem que Portugal se torne competitivo pela mão-de-obra barata esquecem-se que este modelo é insustentável, entre outras razões porque as pessoas emigram.

Há 260 anos um português pegou numa pena e mergulhou-a em tinta para escrever um tratado sobre a reforma dos estudos em Portugal, que era um tema de atualidade naquele ano de 1759. O homem que escrevia não estava em Portugal, de onde fugira aos 27 anos com medo da Inquisição, e aonde nunca mais voltara. Passou por Londres, onde se converteu brevemente ao judaísmo, religião dos seus antepassados. Foi para a Holanda, onde estudou medicina, e ficou racionalista para o resto da vida. Acabou na Rússia, onde foi médico da czarina Anna Ivanovna. Esteve na Crimeia, onde conviveu com muçulmanos e budistas. Passou pela Prússia a visitar Frederico II. E agora está em Paris, onde tenta sobreviver sem pensão até que Catarina a Grande se lembrará dele e o deixará confortável em rublos até ao fim da vida.

O seu nome é António Ribeiro Sanches e nasceu em Penamacor há sessenta anos, em 1699. Tem por isso quase a idade daquele século XVIII a que tantos consideram “das Luzes”. E apesar de viver há tantos anos longe de Portugal, onde aliás nunca voltará (morrerá em 1783, com 84 anos), a sua grande questão continua a ser Portugal. E a grande questão de Portugal na mente dele continua a ser o que fazer com este país. Que estratégia deve Portugal seguir: mão-de-obra barata ou valor acrescentado?

Pode parecer por isso estranho que num tratado sobre educação Ribeiro Sanches dedique uma grande parte da sua secção final à escravatura. Mas faz todo o sentido que o tenha feito, por uma razão simples. Porque a escravatura é desumana para os escravos, é o seu ponto de partida. Mas no que diz respeito à educação, há ainda outro problema para Ribeiro Sanches: é que a escravatura estupidifica os donos dos escravos.

Em palavras do próprio: “Se eu pretendera sómente que a Mocidade Portugueza fosse educada não havia de reprovar a Escravidam introduzida em Portugal: [mas] o meu intento he que seja dotada de humanidade, de amor de conservar os seos semelhantes, e de promover a paz e a uniaõ… [e] não he possivel que se introduzaõ estas virtudes enquanto hum Senhor tiver hum Negro a quem dá huma bofetada pelo menor descuido; [ou] enquanto cada menino ou menina rica tiver o seu negrinho, ou negrinha. [A escravidão] altera o animo daquelles Senhorinhos, que ficaõ soberbos, inhumanos, sem idea alguma de justiça, nem da dignidade que tem a natureza humana. Eu vivi muitos annos em terras adonde a escravidaõ dos Subditos he geral, e vi e observei que nelas naõ se concebe idea da humanidade.”

Ou seja: a escravatura, começando por ser uma tragédia moral, era também um erro estratégico português, e esse modelo económico errado tornava-se num modelo social errado, que por sua vez explicava um modelo educacional errado, que por sua vez resultava — completando o círculo — na anestesia geral à desumanidade que a escravatura era.

Noutra passagem, Ribeiro Sanches já explicara como as riquezas imperiais só deixavam o país mais rico no curto prazo; a longo prazo, ele ficava mais pobre, porque tendo mão-de-obra barata e riquezas fáceis, escolhia não se educar. Os que não tinham colónias e por isso se aplicavam a educar-se (a Suécia tinha já naquela época noventa por cento de gente alfabetizada, ao passo que Portugal não teria dez por cento) ficavam mais ricos ao vender-nos os produtos que faziam. A escravatura, que além de inumana era a mais barata mão-de-obra possível, tornava as elites portuguesas indolentes e incapazes de (como se diz hoje) capacitar o país.

Ou seja, em Ribeiro Sanches aparece uma questão que é ainda crucial para o Portugal de hoje: mão-de-obra barata ou valor acrescentado? Aqueles que defendem que Portugal se torne competitivo pela mão-de-obra barata (já não há escravatura, mas houve e há precariedade e trabalho sem direitos) esquecem-se que este modelo é insustentável, entre outras razões porque as pessoas emigram. A alternativa é então demorada e deve ser aturada: valorização das pessoas e do conhecimento para subir na escala de valor europeia e global.

A tradição de Ribeiro Sanches é depois continuada por Almeida Garrett e Passos Manuel, e vai até Antero de Quental e por aí se prolonga. Mas a tradição contrária também se prolonga pelo século XIX e XX (colonialismo, salazarismo…), e teve uma ressurreição recente com a austeridade e os famosos “cortes nos custos unitários do trabalho” (por outro lado, a opção de saída do euro, sendo aparentemente contrária, é a mesma estratégia de desvalorização, só que “externa” — através da emissão de nova moeda — do que “interna” — através de cortes salariais).

É por isso que se fossemos discutir — e deveríamos — qual deve ser a estratégia portuguesa para a próxima geração a minha resposta caberia numa só frase, que é a que está no título, e que agora se percebe melhor: menos mão-de-obra barata, mais valor acrescentado. Menos Passos Coelho, mais Passos Manuel.

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